segunda-feira, junho 07, 2004

Gilberto Gil quer “reforma agrária” no campo da propriedade cultural

Durante o quinto Fórum Internacional de Software Livre, realizado em Porto Alegre, ministro Gilberto Gil defendeu o software livre como política de inclusão social e como instrumento para promover uma “reforma agrária” no campo da propriedade intelectual.

É possível conceber uma cultura livre numa época de mercantilização geral de todos os bens, materiais ou simbólicos? Isso não só é possível como necessário, segundo os criadores do Projeto “Creative Commons”, lançado oficialmente no Brasil durante o 5° Fórum Internacional de Software Livre (FISL), em Porto Alegre. O “Creative Commons” é um espaço de criatividade coletiva que permite a livre manipulação de textos, sons e imagens através de licenças padronizadas. Seu criador e principal teórico é Lawrence Lessig, professor de direito da Universidade de Stanford e estudioso de aspectos legais das tecnologias modernas, especialmente da Internet. Também é conhecido por sua atuação no processo anti-truste movido pelo Departamento de Justiça dos EUA contra a Microsoft, onde atuou como um “friend of the court” (amigo da Corte), a convite do juiz Thomas Painfield Jackson.

Autor de “Code and Other Laws of Cyberspace” (Código e Outras Leis do Ciberespaço) , e de “The Future of Ideas” (O Futuro das Idéias) – ainda sem tradução para o português -, entre outras obras, Lessig esteve em Porto Alegre para participar do lançamento do projeto e destacou o engajamento brasileiro no projeto, o que, segundo ele, pode colocar o país em uma posição de vanguarda mundial no setor.

O projeto ganhou um padrinho forte no Brasil, o ministro da Cultura, Gilberto Gil, que participou do debate, no Centro de Eventos da PUC-RS, que marcou o lançamento do “Creative Commons”. Foi uma das atividades mais concorridas do FISL, reunindo cerca de 1.500 pessoas. Gil destacou o compromisso do governo Lula em promover aquilo que denominou de “reforma agrária” no campo da propriedade cultural, uma reforma que teria como um de seus instrumentos centrais o software livre. Para Gil, o software livre permite uma espécie de “desapropriação dos latifúndios intelectuais”, o que seria imprescindível para o desenvolvimento cultural e a criatividade de maneira geral.

Este novo sistema, segundo o ministro, permite um acesso mais democrático à cultura e possibilita a implementação de políticas de inclusão digital e para o compartilhamento do conhecimento e da arte. O Ministério da Cultura, garantiu, está engajado na tarefa de ajudar a transformar o Brasil em um pólo do software livre no mundo, um caminho para o domínio da cultura digital. O apoio ao projeto “Creative Commons” é uma das expressões desse engajamento, em busca de uma nova realidade para o setor cultural que não seja regida exclusivamente pelas leis de mercado. As palavras de Gil foram saudadas por Lessig, para quem o ministro da Cultura está levando o Brasil ao posto de país mais importante do mundo nessa discussão.

Cantor, compositor e ministro da Cultura, o multimídia Gilberto Gil é o primeiro artista brasileiro a aderir publicamente à licença “Creative Commons”, que já tem um milhão de obras licenciadas, em pouco mais de um ano de funcionamento. A licença permite que músicas, textos e imagens sejam copiadas, recriadas e distribuídas livremente, significando uma verdadeira revolução no conceito de propriedade intelectual. Gil já deu o exemplo. Sua música “Oslodum”, do disco “O Sol de Oslo” (1998), foi retrabalhada por DJ Dolores, de Recife, sem a tradicional burocracia exigida pela legislação de direito autoral. No Brasil, a “Creative Commons” vem sendo adaptada por um grupo de especialistas da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

O tema da propriedade intelectual
As idéias de Lessig representam uma pequena revolução (ou nem tão pequena assim) no debate sobre a questão da propriedade intelectual. Segundo a legislação atual, o direito autoral permite ao seu detentor o controle sobre a produção de cópias de sua obra. A facilidade de reprodução propiciada pela internet está tornando essa legislação anacrônica. Lessig vem chamando a atenção sobre os prejuízos de adotar leis que tornem absoluto o direito do autor. Segundo ele, o desenvolvimento intelectual da humanidade é marcada pela possibilidade de tomar obras já existentes e recriá-las em outras direções. As peças de Shakespeare seriam um dos exemplos clássicos desse processo, pois foram produzidas, em sua maioria, baseadas em histórias de outros autores. Pela legislação atual, Shakespeare poderia ser proibido de fazer isso.

Lessig não é, em princípio, contra o direito autoral, reconhecendo a importância de estimular a remunerar a criatividade individual. O que ele defende, através do Projeto “Creative Commons”, é uma espécie de sistema aberto, similar ao de patentes, onde um determinado invento é protegido por um tempo determinado (no máximo 20 anos), mas que pode ser usado por outras pessoas mediante o pagamento de uma taxa ao criador. A diferença que ele introduz é permitir aos autores determinar as condições específicas para a reprodução e manipulação de sua obra, que podem incluir o pagamento de alguma taxa ou a liberação total. Uma das vantagens desse sistema, além da criação de um espaço de criatividade coletiva, seria a desburocratização do processo de licenças, hoje submetido a longas polêmicas judiciais.

Liberdade não é gratuidade
A idéia de que o software livre não se traduz pela noção de gratuidade foi defendida com ênfase por Georg Greve, presidente da Free Software Fundation da Europa, que também esteve em Porto Alegre. Segundo Greve, o termo “free” refere-se à liberdade de uso, não de preço, conforme uma definição de software livre elaborada ainda em 1989. Segundo ela, o sistema operacional aberto é caracterizado por quatro espécies de liberdade: a liberdade de usar, estudar e modificar, copiar e distribuir softwares. “Se você adquire um software e na licença deste software estão especificadas essas quatro possibilidades, trata-se de um software livre”, explicou Greve, didaticamente.

O problema do software proprietário como modelo de sistema, segundo ele, é sua tendência a formar monopólios que prejudicam os negócios. Atualmente, exemplificou, cerca de 80% das exportações alemãs são prejudicadas pelo monopólio, uma vez que o software proprietário usa um único processador, tornando a comunicação possível somente se a outra parte possuir a mesma versão de software proprietário. O software livre, por sua vez, abre a possibilidade de mudar os sistemas e métodos utilizados, evitando o risco do monopólio, uma vez que permite a alteração do código fonte e sua distribuição de diversas formas. A Índia foi apontada por Greve como um exemplo no uso de software livre. Segundo ele, engenheiros locais fabricam os seus próprios computadores pessoais, os softwares são de boa qualidade e fabricados, distribuídos e vendidos na própria Índia. Esse modelo, além de desenvolver uma linguagem própria, alimenta a economia local, mantendo recursos dentro do país; recursos que, antes, saíam para o exterior, sob a forma de pagamento de licenças.

Greve foi mais longe e considerou o software proprietário incompatível com o método científico por não oferecer ao usuário o conhecimento de como ele funciona: “É como uma caixa preta que contém um único botão, uma luz e um adesivo dizendo: aperte aqui. Eu aperto o botão e a luz funciona. Mas eu não sei como, nem porque, a luz ligou”, exemplificou. O software livre, por sua vez, permite ao usuário conhecer o código-fonte e, conseqüentemente, conhecer como funciona essa operação e, se julgar o caso, aperfeiçoá-la. Essa possibilidade está na base da idéia defendida por Gilberto Gil, segundo a qual o software livre serviria como um instrumento de desapropriação dos “latifúndios” que dominam hoje a indústria cultural.

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