segunda-feira, junho 07, 2004

Chineses têm vida eterna na Itália

A região de Zhejiang é a Governador Valadares da China. O município brasileiro, famoso pela emigração clandestina de muitos dos seus cidadãos para os Estados Unidos, tem naquele pedaço da China o seu correspondente: da cidade de Wenzhou, os chineses partem em grandes ondas para os países do Primeiro Mundo – e a Itália é um dos destinos preferidos. Famílias inteiras trocam a área montanhosa ao sul de Xangai por Roma, Milão, Florença e Nápoles e chegam à Itália de maneira quase imperceptível para as autoridades da imigração. As rotas são variadas, por terra, mar e ar, e em solo italiano, com alguma sorte, os chineses descobrem, ao longo do processo de imigração, uma espécie de elixir da juventude e, em certos casos, até o segredo da imortalidade.

Sem considerar os primeiros e poucos imigrantes das décadas iniciais do século 20, a grande leva de chineses veio para valer no começo dos anos 80, quando Pequim reatou as relações diplomáticas com Roma. E eles não param de chegar, indiferentes ao crescimento econômico da terra natal e à estagnação italiana. Eram 2 mil em 1982, chegavam a 20 mil há dez anos e hoje já são 100 mil, segundo dados da International Migration Organization, embora o Ministério do Interior italiano, responsável pela segurança interna, tenha o registro oficial da entrada no país de apenas 62.341. Os chineses emigram organizadamente: primeiro, viaja um único representante da família; depois, os parentes; finalmente, os amigos.

Há quase um século, eles embarcavam com um contrato de trabalho. Mais tarde, escapavam do regime opressor de Mao Tse-Tung em busca de liberdade. Depois que Deng Xiao Ping chegou ao poder, o maior atrativo para a fuga passou a ser a busca do dinheiro. Atualmente, tentam manter os próprios costumes em uma sociedade cada vez menos tolerante com os extra-comunitários. Os tempos são outros: ultrapassar as fronteiras italianas e permanecer no país são tarefas hercúleas e custam caro. Mas nada que uma combinação de máfia, malandragem e ação entre amigos e parentes não ajude a resolver. A compra e venda de facilidades virou um grande negócio para a criminalidade asiática em conjunto com a velha e conhecida camorra e autoridades públicas corruptas.

Um rim pela dívida

Muitos chineses vendem a alma ao traficante para chegar à Itália e, na viagem, vivem semanas, meses, até anos vagando de cidade em cidade. Os caminhos são controlados por várias organizações criminosas na Ásia, nos países da antiga Cortina de Ferro e na França, em Paris, sede da Tríade (máfia chinesa) européia. Quem não se financia na própria origem, graças a empréstimos de amigos e parentes, hipoteca o sonho à máfia.

Ela compra as “mercadorias” da família por cinco mil euros. Ao longo da viagem, a dívida do clandestino com a Tríade se multiplica por três. O valor final será pago com o trabalho escravo nos restaurantes e confecções espalhados pelos distritos industriais da Itália, como Milão, no norte, e Prato, no centro. Em março deste ano, a operação Filo Giallo prendeu três empresários imigrantes legais e donos de fábricas de tecidos em que trabalhavam 14 clandestinos sob regime escravo e mais 47 chineses, inclusive crianças e mulheres, em condições sub-humanas.

No ano passado, a Divisione di Investigazione Anti-Mafia, em Trieste, rastreou uma ramificação dos serviços mafiosos. O procurador Nicola Maria Pace, responsável pelo processo, ficou com a certeza de que a venda de órgãos serve como crédito no pagamento da dívida dos imigrantes. Das 18 mil interceptações telefônicas feitas durante a investigação, surgiram informações assustadoras: o preço de um rim, por exemplo, varia entre 3 mil e 20 mil euros.

O doador recebe 300 euros no momento da anestesia e o restante quando apresenta uma outra vítima disposta à doação “voluntária”. Se o “paciente” morrer durante a intervenção cirúrgica em clínicas clandestinas, dificilmente o seu corpo será reclamado e encontrado. O magistrado italiano desmantelou 16 organizações criminosas chinesas e colocou 157 pessoas na cadeia - entre elas, um dos líderes da Tríade na Itália, Xu Bailing, e a sua sobrinha Xumei Wang.

O chinês clandestino é chamado de “wu min” (sem nome). Como está irregularmente no país, não pode alugar casa nem trabalhar e é obrigado a mergulhar na economia informal. É novamente explorado para pagar as contas. Começa, então, a busca por um documento oficial. Aos olhos dos ocidentais, os chineses são quase clones uns dos outros. Aos olhos de funcionários mais distraídos, não só os chineses, mas também os japoneses, os coreanos e os filipinos se tornam irmãos gêmeos. Todos têm olhos puxados, cabelos escuros, baixa estatura e pele branca.

Daí a um assumir a identidade de outro é um pulo. Os falsificadores não pensam duas vezes antes de explorar a semelhança genética com a prestação de serviços fora da lei. O fato de os chineses trabalharem muito em silêncio e viverem num microcosmo quase intransponível facilita a ação dos criminosos. Infiltrar um agente na comunidade ainda é uma missão impossível para a polícia, pelo menos até a chegada à idade adulta da segunda geração de chineses nascida na Itália. Falta pouco, levando-se em conta que 25% dos chineses na Itália são menores de idade.

O que acaba levantando a suspeita das autoridades é olho grande dos criminosos. Foi o que aconteceu com uma quadrilha que despachava regularmente chineses de Milão, com passaportes japoneses falsos, em comitivas de “homens de negócios de Osaka” rumo a Nova Iorque. Tantos “japoneses” desembarcaram nos Estados Unidos, via Itália, que provocaram a desconfiança da polícia de fronteira americana. Os italianos foram alertados, prenderam oito chineses e interromperam o negócio que rendia 40 mil euros por migrante ilegal.

O além é aqui mesmo

Às vezes, as ações criminosas ultrapassam os limites da mortalidade. Que os chineses vivem muitos anos é público e notório. Em muitas províncias do interior da China, os moradores ultrapassam os cem anos de vida. Esta tendência à longevidade foi constatada também em Roma, para surpresa dos italianos. Uma pesquisa realizada em 2000 pelos professores Mauro Gatti e Enrico Todisco, da Universidade de La Sapienza, revelou a presença na Cidade Eterna de 603 estrangeiros nascidos antes de 1900, alguns em 1880. A grande maioria era de chineses.

Os números confirmaram a suspeita numa espécie de reencarnação criminosa ajudada pela incompetência dos cartórios na emissão de certidões de óbito de muitos chineses naturalizados italianos. Salvatore Anania, chefe da Polícia de Estado para Assuntos de Extracomunitários e Prostituição de Milão, explica a NoMínimo: “Depois de dez anos de residência na Itália, o estrangeiro pode requerer a cidadania. Quando este cidadão morre, é enterrado como italiano e não como chinês, mas isto explica apenas parte do problema pois temos muitos estrangeiros com documentos falsos ou, pior ainda, com um documento legal que, na verdade, é de outra pessoa.”

Diz um ditado de Zheijiang que uma folha deve cair sob a sua própria árvore - ou seja, os anciãos devem morrer onde nasceram. Assim, um moribundo legalmente instalado na Itália embarca de volta para a China, sem aviso prévio às autoridades e, uma vez lá, vende ou cede o seu “permesso di soggiorno” - documento que certifica a residência italiana - a um compatriota de malas prontas para fazer a rota inversa. É mais um clandestino assumindo o lugar de um imigrante legal. Ao desembarcar em solo italiano, dificilmente o policial de plantão vai se dar conta de que o titular do “permesso” tem os olhos um pouco mais puxadinhos do que o atual portador.

O falecimento do titular do documento na terra natal, naturalmente, não é comunicado às autoridades italianas. “A única maneira que nós temos de comprovar se o portador do “permesso” é realmente quem diz ser é a impressão digital, mas este recurso técnico só se tornou obrigatório para os imigrantes depois da lei Bossi-Fini, um ano atrás”, conta Salvatore Anania. Segundo o policial, em muitos casos, a simples escritura do nome não è suficiente para identificar um ou outro. “Você sabe quantos chineses existem com o sobrenome Ho?” – pergunta.

Cinzas em casa

Ho está para os chineses como Silva para os brasileiros. E isso quando o problema não se agrava no momento da transcrição do nome do alfabeto chinês para o romano. A barreira lingüística é uma dificuldade quase intransponível para exercer um controle eficaz da comunidade chinesa na Itália. Às vezes, nem um intérprete formado e juramentado consegue decifrar um texto ou um depoimento em dialeto. Seria preciso um tradutor que tivesse o chinês como língua-mãe e conhecesse os cerca de 60 dialetos existentes na China. É importante lembrar que a língua falada não tem nada a ver com a escrita e a sua pronúncia varia de uma região para outra. “Este é um outro problema para nós. Nas grandes cidades, como Roma e Milão, podemos tentar contorná-lo, mas nas menores não é fácil revolver”, lamenta o policial Anania.

Os homens de Salvatore Anania circulam dia e noite pela China Town de Milão, na avenida Paolo Sarpi e adjacências. O bairro é tranqüilo. As ruas estão tomadas por lojas de exportação e importação de mercadorias – roupas, em sua maioria -, restaurantes, bancos especializados em remessas de dinheiro para o exterior, lavanderias e cabeleireiros. Os letreiros são em chinês e italiano. O movimento é intenso até na hora do almoço. Os chineses trabalham muito e não fazem a sesta de duas horas como os italianos. Desde a chegada deles, os preços dos imóveis desta zona conhecida como Velha Milão não param de subir. O metro quadrado, em dois anos, passou de 2 mil para 3 a 4 mil euros, dependendo da localização. Os compradores não pechincham e costumam pagar em dinheiro.

A rua Bramante é paralela à Paolo Sarpi e termina onde começa o cemitério Monumental. Curiosamente, pouquíssimos chineses atravessaram esta rua que liga o mundo dos vivos ao dos mortos. O campo santo mais famoso da cidade tem 110 mil sepulturas, mas apenas três são de chineses. O florista confirma que é difícil assistir a um velório chinês. “A última vez foi… já tem uns bons anos. Gente com olhos puxados por aqui só os turistas japoneses. Dizem que os chineses não morrem nunca, não é verdade?”, diz, abrindo um largo sorriso, sem querer dar o nome.

“Eles são cremados e as cinzas são levadas para casa, ao contrário do que determina a lei”, entrega um dos coveiros, também sem se identificar, talvez com medo de alguma alma penada chinesa. Mas nada disso ameaça a paz eterna de Hu Gianni, um chinês imigrado de Zehjiang, nascido em 1916. Desde 1992, ele repousa no Terrazzo di Levante, à direita de quem entra no cemitério, um lugar de destaque bem longe dos outros dois túmulos do seus patrícios. Hu Gianni é a prova, morta, de que a lenda urbana da imortalidade dos chineses nem sempre fica em pé.

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