terça-feira, dezembro 12, 2006

Normal

Um primo da minha mulher, fornecedor de medicamentos e material para hospitais e centros públicos de saúde, conta-me a seguinte história. Tem 300.000 reais e quebrados para receber da prefeitura de uma cidade fluminense há vários meses, e o dinheiro não sai. A secretaria está segurando o pagamento. Na lata, ouve um fiscal dizer que teria de dar 10% de caixinha, 30.000 reais, para receber. Mortificado, diz que aquilo não estava previsto, a venda não fora superfaturada, ia ter prejuízo. É pegar ou largar, sentencia o fiscal. Passa por ali um amigo de outros tempos do fornecedor, agora subchefe da fiscalização. Ele conta o caso, apela, e consegue, no máximo, um desconto pela metade, ouve a justificativa de que é assim que funciona e um conselho: da próxima vez, incluísse o "extra". Diante da minha cara escandalizada, ele resume:

– Normal.

"Normal" tornou-se expressão popular, empregada nos momentos em que deveria haver espanto, e o que vemos é conformação, impotência. Indicação de que a anomalia passou a ser regra. É um meio de o brasileiro conviver com o absurdo. Se alguém exclama "Que absurdo!" quando ouve um caso desses, o que se escuta é: "Normal". Exemplos?

Uma reportagem de televisão mostra o negócio de drogas na entrada da Favela do Buraco Quente, em São Paulo. Os vendedores são adolescentes. Compradores passam de carro, pegam suas trouxinhas e pagam quase sem parar. Tipo drive-thru. Consumidores a pé entram, compram a droga ali no beco mesmo, ao lado da molecada que joga bola. Um garoto de uns 13 anos, revólver em punho, fez o motorista do ônibus mudar o itinerário (é este quem conta), não passar ali pela porta, para não atrapalhar o trânsito da freguesia. Tudo filmado, a polícia sabe.

– Normal.

Presos condenados têm nas celas aparelhos de DVD, televisão e até freezer. Uma reportagem sobre o presídio de Hortolândia mostra que alguns presos têm um ganho extra como "freezeiros": alugam espaço nos seus freezers para outros prisioneiros, ou trocam favores com eles. Absurdo?

– Normal.

Gente que roubou um pacote de manteiga no supermercado ou que foi pega com um boné alheio após uma briga de rua fica mofando na cadeia, enquanto advogados recorrem a formalismos jurídicos para manter em prisão domiciliar assassinos confessos de pessoas indefesas, matadores dos próprios pais ou de namoradas, e ladrões de dinheiro público, mesmo condenados. É justo?

– Normal, cara.

Vemos cenas de hospitais populares com doentes em macas nos corredores ou mesmo deitados pelo chão, à espera de atendimento.

– Normal...

Malandros tomam conta das ruas em torno de escolas, hospitais, casas de shows, estádios, pontos de comércio, teatros, eventos, e extorquem dinheiro dos motoristas que procuram uma vaga para estacionar. Não é, como deveria ser, uma aproximação pacífica, na boa, um pedido jeitoso de uns trocados pela prestação de um favor insignificante. Nada disso. É uma imposição, uma ameaça quadrilheira, algo a que a população se submete para evitar o pior. A polícia sabe, os guardas e fiscais da prefeitura sabem, mas ninguém faz nada para proteger o cidadão. E por quê?

– É normal.

Se um pequeno craque de futebol é muito novo para ser vendido aos clubes estrangeiros, aumenta-se a sua idade com novo registro de nascimento, falsificado. E lá vai ele.

– Normal.

O bandido conta no livro Falcão que, quando a polícia invade a favela atrás do ponto de tráfico, eles correm e se escondem no barraco que quiserem. E a família moradora tem de aceitar. Se não aceitar, ou é obrigada a se mudar da favela ou é morta. É a lei. Está certo isso?

– Normal – justifica o bandido.

E normal é contrabando, pirataria, batalhas entre quadrilhas, jogar lixo pela janela do carro, estacionar em fila dupla, bingo viciado, jogos de azar, roubos de laptops nos aeroportos, pagamento de propina para não ser assaltado... Vivemos uma dolorosa e cruel normalidade.

Um comentário:

Karina disse...

Agora não devo mais nada... rs