quarta-feira, março 02, 2005

Poderes ocultos por toda parte

Teorias conspiratórias oferecem explicações sedutoramente simples para um mundo caótico. Mas cuidado! Não acredite facilmente.


O presidente John F. Kennedy não foi assassinado por Lee Harvey Oswald; na verdade, ele foi morto pela CIA por se opor às operações clandestinas da agência de inteligência. A princesa Diana não morreu num acidente de carro enquanto o motorista fugia de paparazzi; a família real teve participação na morte porque não queria que Diana herdasse poder ou riqueza. E quando você vê aviões de caça a grandes altitudes deixando trilhas de condensação por onde passam, não é apenas o efeito físico da emissão de calor no ar frio e úmido; os aviões estão pulverizando gotículas - trilhas químicas, ou chemtrails - sobre as pessoas, às vezes testando agentes infecciosos ou venenos, ou, quem sabe, vacinas.

Teorias conspiratórias têm florescido por séculos, e a internet acelerou a sua disseminação. Pessoas que acreditam em rastros químicos criaram diversos sites na web para alertar as outras sobre esse perigo. A BBC (British Broadcasting Corporation) localizou mais de 36 mil sites apresentando mitos e lendas sobre o acidente fatal de Lady Di em 1997.

Por que as pessoas vão tão longe para tentar provar que poderes ocultos estão por trás de tudo, desde a disseminação de doenças até a morte de celebridades? E aqueles que acreditam nessas teorias apenas têm imaginação fértil, ou há algo mais se passando em suas cabeças? A maioria dos indivíduos que se deleitam com histórias de conspiração é saudável, mesmo quando se aproxima dos limites do delírio.

Psiquiatras definem como delirante alguém que tenha uma falsa visão da realidade e se aferre a ela com convicção, a despeito de argumentos e indícios claros contra essa percepção. Sua certeza resoluta pode assumir diversas formas. Nos delírios relacionais, um indivíduo vê todas as pessoas, os acontecimentos e objetos à sua volta como ligados a ele.

Acredita que a vitrine da loja da esquina está lhe enviando mensagens, ou que determinado artigo de jornal dirige-se exclusivamente a ele. Já nos casos de delírios persecutórios, o indivíduo pensa que os outros o estão observando, ouvindo suas conversas ou seguindo seus passos.

LIMITES DA SANIDADE

Seja qual for o delírio, o terapeuta em geral não consegue dizer se uma idéia aparentemente maluca tem ou não base na realidade - e, em certo sentido, não é isso o que importa. O diagnóstico de delírio é baseado, sobretudo, no modo como o paciente apresenta a idéia e sua certeza absoluta sobre os fatos que dela decorrerão. Mesmo assim, os terapeutas devem ser cautelosos. Afinal, é possível que uma paciente esteja realmente sendo assediada no trabalho, traída pelo marido ou enganada por seu sócio.

Os terapeutas também devem tomar cuidado para não confundir fatos com delírios, uma armadilha conhecida como o efeito Martha Mitchell. Martha era esposa de John Mitchell, ex-procurador-geral dos Estados Unidos. Em outubro de 1972 ele foi acusado de ter dado a ordem para invadir o comitê central da campanha dos democratas, no Watergate Hotel, em Washington. Martha diversas vezes afirmou à imprensa que seu marido estava sendo usado como bode expiatório para proteger o verdadeiro culpado - o presidente Richard M. Nixon. A Casa Branca espalhou boatos sobre Martha, dizendo que ela sofria de alcoolismo e insinuando que suas declarações não passavam de delírios. Quando o escândalo finalmente foi esclarecido, as afirmações de Martha foram comprovadas e ficou demonstrado que ela era completamente sã.

O enorme número e o sucesso de livros e programas de televisão sobre "o que de fato aconteceu" em Watergate ou "quem realmente matou" o presidente JFK atestam que as pessoas são facilmente seduzidas por teorias conspiratórias. Mas, por quê? Uma resposta inicial é que essas teorias oferecem uma mensagem simples. Não importa o acontecimento, há uma única força - em geral malévola - por trás dele. Muitos de nós tendem a simplificar exageradamente questões complicadas, reduzindo-as a uma causa única sempre que possível. Tal procedimento organiza o caos, torna inteligível um mundo complexo. E, uma vez que tenham acreditado entender como algo funciona, se aferram a essa crença.

Crer em um plano secreto supremo elaborado por uma poderosa organização estabelece relações de causa e efeito simples que se desenrolam numa cadeia linear de acontecimentos. O acaso e a ambigüidade não desempenham nenhum papel, algo reconfortante até mesmo diante de forças sinistras.

Conspirações têm grande chance de se tornar populares quando alimentam preconceitos ou superstições já existentes, e a crença na conspiração reforça essas posições. Nesse círculo vicioso, toda e qualquer conexão com a realidade é rapidamente perdida. E, se a teoria confirma velhas suspeitas aceitas por muitos, o número de adeptos aumentará.

RAÍZES DA DESCONFIANÇA

Um bom exemplo, apesar de hediondo, é a acusação, feita em diversos momentos desde a Idade Média, de que judeus sacrificariam crianças cristãs em rituais secretos. Esse mito foi reforçado pelo monge beneditino britânico Thomas de Monmouth. Em seu livro Vida e milagres de São Guilherme de Norwich, publicado em 1713, Thomas contava a morte de um menino de 12 anos. Valendo-se de indícios inconsistentes, ele afirmava que o garoto fora vítima de um assassinato ritual praticado por judeus.

Esse libelo infamante foi reiteradamente martelado até o século XIX.

Escritos anti-semitas e documentos falsificados, tais como O judeu do Talmude, publicado pelo teólogo August Rohling em 1871, conferiram um ar pseudocientífico às lendas. Essas e outras falsas acusações do mesmo tipo ajudaram a alimentar o anti-semitismo do século XX e até os dias atuais.

As pessoas parecem particularmente dispostas a aceitar histórias extravagantes como essas se elas brotam de uma desconfiança generalizada no outro. Em 1994, Ted Goertzel, da Universidade Rutgers, EUA, realizou um estudo em que os entrevistados liam dez histórias conspiratórias e depois eram questionados sobre quais eles julgavam verdadeiras. A maioria respondeu que pelo menos uma delas estava correta, e muitos aceitaram várias como sendo verídicas. Por exemplo, metade dos participantes acreditava que os japoneses conspiravam para destruir a economia americana. No entanto, ainda mais interessante foi a descoberta de Goertzel de que pessoas descontentes com a vida tinham maior propensão a acreditar em teorias conspiratórias. Os entrevistados mais crédulos também tendiam a demonstrar maior desconfiança em relação a políticos e servidores públicos.

Auto-identificação racial também pode influir. Grande parte dos afro-americanos participantes do estudo acreditava que o governo americano havia criado o vírus da Aids em laboratórios secretos e infectado propositadamente pessoas negras. Talvez essa crença tenha origem em algo desconhecido conscientemente. Em 1932, na cidade de Tuskegee, no Alabama, pesquisadores do precursor do Centro de Controle e Prevenção de Doenças deram início a um tristemente célebre estudo envolvendo quase 400 homens afro-americanos infectados com sífilis.

Em vez de dar o diagnóstico correto, os pesquisadores simplesmente informaram aos homens que exames médicos indicavam que eles tinham "sangue ruim" - um termo usado naquela época para uma série de problemas, da anemia à síndrome da fadiga crônica. Os pesquisadores ofereceram a esses homens pobres e desesperados tratamento gratuito e até mesmo se ofereceram para arcar com os custos de seus funerais, caso necessário. Na verdade, os médicos queriam estudar o progresso da sífilis quando não tratada - até seu ponto final, a morte. Mesmo após a penicilina se tornar largamente difundida, em 1947 - medicamento que poderia ter curado esses pacientes -, o estudo continuou. Muitos participantes morreram, mas não sem antes contaminar outras pessoas.
Esses homens foram tratados como ratos de laboratório.
Surpreendentemente, o projeto continuou até 1972, quando a jornalista Jean Heller descobriu o plano secreto. Três meses depois o governo federal declarou que o estudo era antiético e o interrompeu. Um tribunal concedeu indenização de US$ 9 milhões aos participantes e suas famílias, além de tratamento médico gratuito. No entanto, nenhum dos pesquisadores ou administradores envolvidos foi responsabilizado criminalmente. Somente em maio de 1997 o presidente Bill Clinton pediu desculpas oficialmente aos oito sobreviventes.

Essa história, e outras semelhantes, pode muito bem ter alimentado a idéia, largamente aceita entre os afro-americanos entrevistados por Goertzel, de que o governo americano conspirou para disseminar a Aids entre membros de sua raça. A ocultação de fatos reais também pode ser o motivo pelo qual muitos negros ainda desconfiam dos atuais esforços do Centro de Controle e Prevenção de Doenças para prevenir e tratar a síndrome nacionalmente.

Uma teoria conspiratória não precisa, no entanto, ter suas raízes em um fato real. Incidentes completamente inventados bastam, desde que sejam verossímeis. Na política, teorias conspiratórias falsas são freqüentemente usadas para difamar um adversário. Ao longo da história, governantes têm apresentado seus oponentes como conspiradores responsáveis por toda sorte de revés. No século I d.C., o imperador romano Nero espalhou o boato de que os cristãos atea-ram fogo em Roma. Na Idade Média, massacres organizados de judeus foram desencadeados quando líderes russos fizeram acusações bizarras, e extremamente imaginosas, contra eles.

Um dos exemplos mais bem-sucedidos, e também dos mais perversos, são os Protocolos dos sábios de Sião. Esse livro, aparentemente publicado pela polícia secreta do czar russo Nicolau II, em 1897, insinuava uma conspiração de judeus e maçons para conquistar o mundo. O documento forjado acusava ambos os grupos de serem responsáveis pela Revolução Francesa, bem como pela ascensão do socialismo e do anarquismo - em suma, por tudo aquilo que os monarquistas e nacionalistas de fins do século XIX e começo do século XX temiam. Os Protocolos exerceram enorme influência sobre a opinião pública de diversos países.

Desde o início questionou-se a autenticidade dos Protocolos, mas isso em nada afetou sua disseminação. Paradoxalmente, os argumentos contra a veracidade do livro apenas reforçaram a crença na existência de uma conspiração judaica internacional dedicada a desacreditá-lo. O texto apareceu e reapareceu seguidamente sob novos disfarces, na maioria das vezes acompanhado por outros tratados anti-semitas. Entre outras coisas, o texto serviu como importante fonte da ideologia nazista, tendo sido adotado por Adolf Hitler. Chegou a ser incluído na lista de leituras obrigatórias das escolas alemãs, a partir de 1935. Atualmente, os Protocolos são largamente difundidos em países árabes, envenenando a mente de seus leitores.

MACARTHISMO

Teorias conspiratórias oferecem a manipuladores políticos justificativas para usar todo e qualquer meio possível para destruir seus rivais. O famigerado Sub-comitê Permanente de Investigações do Senado dos Estados Unidos, presidido pelo senador Joseph McCarthy no início dos anos 50, procurava comunistas escondidos por todo o país - e, claro, os encontrou. Uma denúncia, assim como a recusa de alguém em apontar outros supostos comunistas, era suficiente para "provar" que a pessoa era comunista. Quase 10 mil pessoas perderam seus empregos em razão de acusações falsas ou obtidas mediante coação. Assim, os partidários de uma grande conspiração comunista viram suas idéias confirmadas por esses resultados.

Ditadores e tiranos, para se rodearem de um exército de seguidores que os sirva cegamente, inventam constantemente novos complôs contra seus regimes. E pelo fato de seus supostos oponentes agirem às escondidas, eles podem ser qualquer um ou estar em qualquer lugar - o que torna necessário estar sempre alerta. É desse modo que autocratas justificam órgãos de repressão. Além disso, como os regimes ditatoriais, aos olhos de seus simpatizantes, estão sempre certos, qualquer problema que surja é sempre atribuído a conspiradores e não a erros próprios.

Até mesmo sociedades democráticas inventam ou são seduzidas por histórias fantasiosas. Muitos escritores e editores publicaram, depois dos ataques de 11 de setembro, "dossiês" culpando os mais diversos grupos.

Alguns até afirmaram que os ataques foram realizados pela CIA. Os defensores dessas teorias colocavam em dúvida a versão oficial dos fatos, propondo explicações apoiadas em "especialistas" anônimos da internet como suas fontes. Outros chegaram a afirmar que agentes secretos americanos fizeram colidir, por meio de controle remoto, os dois aviões contra o World Trade Center. E, uma vez que agentes sabiam que o impacto talvez não fosse suficiente para os prédios desabarem, eles também teriam explodido suas estruturas no momento do choque. Por quê? Para que a superpotência pudesse usar a tragédia para justificar suas operações militares no Oriente Médio. As operações seriam, por si só, provas mais do que suficientes da armação.

Essa lógica - uma inversão da causa e efeito - é típica das teorias conspiratórias. Fatos atuais - como a "guerra ao terrorismo", em grande parte uma reação ao ataque ao World Trade Center - são usados como indícios para provar que tais acontecimentos foram planejados muito antes. Teóricos da conspiração nem imaginam que a história pudesse ter se desenrolado de outro modo.

De dentro de seus casulos de motivos pressupostos e maquinações, os autores de teorias da conspiração também criam suas próprias defesas.

Suas reputações dependem da habilidade para defender suas idéias contra todos que as contestam. Uma tática clássica é alegar compreensão absoluta das coisas. Em sociedades antigas, compreensão absoluta advinha de oráculos e presságios. O poder dos sacerdotes também se fundava na capacidade de entender sinais. Apenas uns poucos estavam aptos a ler sinais mágicos ou interpretar as entranhas de animais sacrificados e, deste modo, explicar a vontade dos deuses.

A predisposição da sociedade para colocar em pedestais aqueles que são capazes de interpretar esse conhecimento oculto persiste ainda hoje.
Sherlock Holmes, avô dos modernos detetives, solucionava crimes com base em um punhado de pistas. Médicos diagnosticam enfermidades internas baseados em sinais exteriores da doença. Astrônomos podem explicar tanto o começo como o fim do Universo pela simples observação do céu à noite.

Pelo fato de que conspirações, por definição, acontecem às sombras, apenas os iniciados podem compreendê-las. Isso eleva os teóricos da conspiração à condição de profetas e satisfaz seus egos. E eles podem sempre contar com apoio, pois suas interpretações alimentam as necessidades ou preconceitos de muita gente.

Teorias da conspiração dizem muito a respeito dos inimigos imaginários, medos e preconceitos daqueles que as criam, e por isso podem ser úteis como documentos da história contemporânea. No mundo atual, que tantos consideram demasiado complexo, explicações simples são atraentes. Por isso, é muito provável que os primeiros anos do século XXI experimentem um aumento vertiginoso da crença em conspirações.

original: http://www2.uol.com.br/vivermente/conteudo/materia/materia_19.html

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