Mostrando postagens com marcador carreira / educacao. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador carreira / educacao. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, outubro 17, 2007

Votando no capitão

Olavo de Carvalho
Jornal do Brasil, 11 de outubro de 2007

Quem quer que tenha acompanhado as minhas aulas sobre a "teoria dos quatro discursos" – e, graças à internet, é um bocado de gente, a esta altura – sabe que uma das principais dificuldades na arte da palavra é a mudança de clave do discurso poético para o retórico. Ninguém faz isso direito, porque a primeira das duas modalidades está focalizada na exteriorização de percepções íntimas, a segunda no manejo deliberado das reações do ouvinte ou leitor. Expressão é uma coisa, persuasão é outra. Nos dois casos, trata-se de criar uma verossimilhança, mas a verossimilhança poética é pura coerência entre imagens, a retórica um acordo bem dosado entre o que você quer dizer e o que o público quer ouvir. Por isso o discurso poético se dirige a um auditório geral e indefinido, abrindo-se à multiplicidade imprevisível das interpretações que lhe dêem, ao passo que o retórico se dirige a uma platéia em particular, permanecendo ineficaz sobre as demais, exceto se ouvido como mera produção poética, desligada dos fins práticos a que visava originalmente.

Daí o fenômeno, tão repetidamente comprovado, de que o artista narrador, seja no romance, no teatro ou no cinema, não tenha controle quase nenhum sobre o sentido político-ideológico da história que narra, o qual sentido não depende da narrativa em si, mas dos fatos do mundo exterior – remotos e fora do alcance do artista -- a que a platéia associe os episódios narrados, fazendo destes o símbolo daqueles.

Gênios do porte de um Stendhal ou de um Balzac não venceram essa dificuldade – por que deveríamos exigi-lo dos nossos miúdos cineastas tupiniquins? Todos eles são mais comunistas que a peste, mas isso não impediu que em "Central do Brasil" o menino perdido, fugindo do inferno urbano, encontrasse no Brasil rural os antigos valores que são a essência mesma do conservadorismo: a família, a religião, a segurança, o amor ao próximo. Nem que "Cidade de Deus" resultasse numa apologia do que pode haver de mais reacionário e pequeno-burguês: subir na vida por meio do trabalho honesto.

Agora, José Padilha é crucificado pela esquerda porque em "Tropa de Elite", pela primeira vez, o cinema nacional mostra a violência carioca pelo ponto de vista da polícia, que é o dos cidadãos comuns, e não pelo dos bandidos, que é o da classe artística, dos "formadores de opinião" e do beautiful people esquerdista em geral. Padilha não fez isso porque queria, mas porque, tendo optado por uma narrativa realista, teve de ceder à coerência interna entre os vários elementos factuais em jogo, mostrando as coisas como elas aparecem aos olhos de qualquer pessoa que esteja boa da cabeça e não tenha se intoxicado nem de cocaína nem de Michel Foucault, como o fazem aqueles três grupos de criaturas maravilhosas. O resultado é que no seu filme os traficantes são assassinos sanguinários, os policiais corruptos são policiais corruptos, os policiais bons são homens honestos à beira de um ataque de nervos, os estudantes esquerdistas metidos a salvadores do país são clientes que alimentam o narcotráfico e mantêm o país na m.... Todo mundo sabe que a vida é assim, e é por isso que instintivamente todo mundo acha que descer a mão em bandidos, por ilegal que seja, é incomparavelmente menos grave do que o imenso concurso de crimes – guerrilha urbana, homicídios, seqüestros, assaltos, contrabando, corrupção política – que o narcotráfico traz consigo. Daí que, entre as razões do policial idôneo e as da bandidagem – que são as mesmas da esquerda iluminada --, o povo já tenha feito sua escolha: Capitão Nascimento para presidente.


(fonte: http://olavodecarvalho.org/semana/071011jb.html )

Welcome to Brazil, Dirty Harry!

Muitos cristãos não têm uma noção muito simples: "todo mundo" é pecador. A modernidade, a "ateização" da sociedade, leva a ignorar muitos dos pecados, tornando quem escolhe ter esses "santos", e cria uma compensação: há certos pecados proibidíssimos. Não me confundam, há sim uma escalaridade na gravidade dos pecados. Mas hoje, nesse mundo da "paz mundial", versão moderninha do paz e amor hippie, o pecado proibido é a violência, mesmo que não seja uma violência pecaminosa. Jesus Cristo, que jamais pecou, se hoje fizesse um chicote para expulsar os vendilhões do templo, seria atacado pela mídia.

Guerras são necessárias. Mataram teus amigos e vizinhos e vão te matar. Pecado é não agir de forma violenta para impedir: peca-se por omissão. E nas guerras, violência é o método. Deus nos deu a ira e a força violenta para usarmos em caso de necessidade. Acontece que o usuário dessas forças é um pecador, e pode usá-las de maneira errada mesmo com reta intenção. Aí entra a "ética moderna" e crucifica-o.

No filme "Tropa de Elite", os policiais do BOPE são violentos, têm até um pouco de sadismo, mas agem com a reta intenção de acabar com o tráfico, ou pelo menos reduzi-lo ou ainda contê-lo. São pecadores como eu, você, ou o maconheiro da esquina. Os traficantes, muitas vezes, agem por sadismo. São pecadores como todos nós, mas o pecado deles destrói vidas e impede os demais de prosseguir na virtude. Devem ser impedidos, e (reitero!) só podem ser impedidos por outros pecadores.

Nos anos 70, os EUA sofreram um surto de violência "gratuita" terrível. Não vou explorar as origens disso, vá ler o Olavão. A reação veio: Charles Bronson e o "Desejo de Matar" e Dirty Harry, o policial honesto, intransigente e violento, interpretado por Clint Eastwood. Capitão Nascimento — protagonista de "Tropa de Elite" — é o nosso Dirty Harry. Seja bem vindo!

Na primeira metade do filme, Nascimento marca muito ao dizer: "Eu sempre me pergunto: quantas crianças a gente tem que perder pro tráfico só para um playboy rolar um baseado?". E bate, estapeia, humilha, tortura, ao mesmo tempo que chora, se condói, comemora e agradece. É a personagem mais bem construída que vi nos últimos tempos: ele é intensamente humano, plenamente pecador, mas age pelo que considera justo e correto. Não é um santo nem um demônio, não é um animal nem um "espírito evoluído": humano. Choca-se com seus atos? Ora, olhemos para a nossa vida, para a nossa vileza! Será que o que fazemos não é tão ruim quanto?

"Tropa de Elite" é um filme excelente. Queira Deus seja o início uma reação como a que houve nos EUA nas décadas de 70 e 80. Eu li em um artigo de opinião no Estadão que ele abria uma nova era no cinema brasileiro: a era da pirataria (para quem não sabe, o filme será lançado dia 12 de outubro, mas já pululam cópias por aí) cinematográfica. Que o filme possa não ter apenas esse marco.

(fonte: http://lpereira.wordpress.com/2007/09/23/welcome-to-brazil-dirty-harry/ )

segunda-feira, outubro 01, 2007

Estudo: crianças podem se recuperar de danos da TV

Crianças que assistem muita TV desde cedo têm mais chances de sofrer problemas comportamentais, mas os efeitos da exposição prolongada podem ser revertidos, segundo um estudo da Universidade americana Johns Hopkins publicado pela revista especializada Pediatrics.

Os especialistas da Johns Hopkins concluíram que crianças menores de 5 anos que assistem mais de duas horas de TV por dia têm maior risco de apresentar problemas, mas as que diminuem o número de horas até os 5 anos conseguem reverter este quadro.

A influência da TV sobre crianças pequenas gera um intenso debate, com evidências cada vez maiores de que a exposição prolongada pode afetar o comportamento delas.

O estudo da escola de saúde pública Bloomberg, da Universidade de Johns Hopkins, analisou dados de 2,7 mil crianças, perguntando aos pais sobre os hábitos de assistir TV e o comportamento de crianças aos 2 e 5 anos de idade.

Um em cada cinco pais respondeu que seus filhos assistiam duas horas de TV ou mais, todos os dias, tanto aos 2 anos, como aos 5 anos.

Recomendações

Esta exposição "prolongada" foi relacionada a problemas de comportamento, com as crianças que assistiam pouca TV aos 2 anos de idade e mais de duas horas aos 5 anos apresentando mais chances de apresentar problemas de desenvolvimento e com suas habilidades sociais.

As crianças de 5 anos que têm TV em seus quartos também apresentaram mais chances de ter problemas de comportamento, poucas habilidades sociais, e problemas de sono.

Mas as crianças que assistiam duas ou mais horas de TV aos 2 anos de idade e tiveram sua exposição reduzida aos 5, não mostraram maiores riscos de apresentar esses problemas.

A pediatra Cynthia Minkowitz, que liderou o estudo, disse que "é vital para os médicos enfatizar a importância de reduzir a exposição à TV em crianças pequenas".

Nos Estados Unidos, a Academia Americana de Pediatras recomenda que as crianças com menos de 2 anos de idade não assistam TV, e que as crianças mais velhas não assistam mais do que duas horas por dia.

O psicoterapeuta Richard House, da Universidade de Roehampton, que pesquisa o efeito da TV sobre crianças, afirma que não está convencido de que a diminuição da exposição pode reverter os riscos.

"O comportamento humano é muito mais complexo do que essas medidas de comportamento e habilidades sociais - pode haver danos mais sutis que passam indetectados", disse ele.

"Cada criança é diferente e sou muito cético em relação à noção de que é apropriado dar a famílias uma única recomendação sobre o número de horas que suas crianças podem assistir TV. Algumas crianças são extremamente sensíveis aos efeitos da televisão."

sexta-feira, setembro 21, 2007

Ciência da Computação ?!

"Ciência da Computação tem tanto a ver com o computador como a Astronomia com o telescópio, a Biologia com o microscópio, ou a Química com os tubos de ensaio. A Ciência não estuda ferramentas, mas o que fazemos e o que descobrimos com elas."

segunda-feira, abril 16, 2007

Considerações sobre o projeto "Um Laptop por Criança"

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROJETO "UM LAPTOP POR CRIANÇA"

Valdemar W. Setzer
www.ime.usp.br/~vwsetzer
Original de 8/4/07; última versão: 11/4/07

1. Introdução

Há muito eu estava para escrever minhas opiniões sobre o projeto "Um laptop por criança" ("One laptop per child", OLPC). Marcelle Cury, que está escrevendo um trabalho de conclusão de curso de pós-graduação sobre o tema de computadores no ensino, pediu-me insistentemente que expusesse minhas idéias a respeito desse projeto, para poder usá-las (e, espero, criticá-las), e é a ela que se deve agradecer o nascimento deste artigo. Quero também expressar meu agradecimento por ela ter achado que minhas idéias a respeito daquele projeto são importantes, pelo menos para algumas pessoas.

O projeto menciona apenas "criança". No entanto, no que se segue vou considerar em geral crianças e jovens, especialmente até cerca de 15 anos, idade em que normalmente deveriam entrar no ensino médio.

No item 2 faço um breve apanhado desse projeto. Para apresentar minhas opiniões sobre o mesmo, vou encará-lo de dois pontos de vista: o local, que se aplica especialmente ao Brasil, devido a nossas condições educacionais, sociais, políticas e econômicas, tratado no item 3, e o universal, que se aplica ao uso de computadores por crianças e jovens, válido em qualquer país e ambiente, tratado no item 4. Como já escrevi bastante sobre esse último tópico, farei nesse item apenas um resumo de minhas idéias a respeito. Finalmente, no item 5 coloco algumas considerações finais e conclusões.

2. O projeto

O projeto "Um laptop por criança" originou-se no Media Lab do M.I.T.; este é um dos centros de ensino e pesquisa mais importantes do mundo na área de engenharia e tecnologia. Quando o ITA, de S.J. dos Campos, SP, foi instituído, e onde me formei em Engenharia Eletrônica em 1963, seu objetivo era tornar-se o "M.I.T. do Brasil".

Examinando o site do projeto em http://www.laptop.org, verifica-se que, apesar de haver de pronto uma frase de seu idealizador, N. Negroponte, dizendo que o projeto é educacional ("It's an education project, not a laptop Project – Our goal: To provide children around the world with new opportunities to explore, experiment and express themselves."), há apenas algumas vagas menções genéricas com relação a esse aspecto. Por exemplo, há um registro de todos os progressos do projeto, e nele só se encontram, até a data da escrita deste artigo, notícias referentes ao andamento do desenvolvimento da máquina e dos respectivos programas do sistema operacional e de comunicação (ver www.laptop.org/vision/progress/). Trata-se claramente de um projeto de hardware e de seu software básico, isto é, de um computador barato, com um mínimo de capacidade de processamento, e de programas que permitam que crianças ou jovens o utilizem para tarefas básicas e acesso à Internet. O objetivo básico era de produzir um computador com essas características, relativamente robusto, e que pudesse custar US$100. Aparentemente, o custo ficará em torno de US$120.

O seu idealizador, N. Negroponte, percorreu com sucesso inúmeros países tentando "vender a idéia", de modo que os respectivos governos comprassem um número suficiente dessas máquinas para distribuir, gratuitamente, aos alunos de suas escolas – daí a pretensa aplicação na educação (ver o site citado).

A única consideração educacional que existe nesse projeto é a hipótese de que, dando-se computadores a crianças e jovens, eles farão automaticamente um progresso educacional. Como veremos no item 4, essa premissa é falsa, como já foi inclusive demonstrado pelas pesquisas que citarei. Pelo contrário, recordarei nesse item as considerações que me levam a afirmar que os computadores prejudicam a educação.

A falta de um projeto educacional acompanhando o projeto "Um laptop por criança" mostra que, mais uma vez, os meios estão erradamente sendo considerados como fins. Já estamos destruindo a natureza por causa dessa mentalidade; veremos no item 5 o que estará sendo destruído com o projeto em questão.

3. Considerações locais

3.1 Objetivos

No nosso caso, a proposta é que o governo compre 1 milhão dessas máquinas para distribuir aos alunos das escolas estatais. O leitor pode estranhar essa expressão: uso-a pois as nossas escolas, erroneamente denominadas de "públicas", não são realmente públicas: o público não tem quase influência sobre elas, como na contratação de diretores e de professores, na elaboração dos currículos, na adoção de livros didáticos, etc. Nem mesmo os próprios professores têm influência nesses aspectos. Não é o fato de uma escola ser gratuita é que a faz ser pública. Pública é uma escola gratuita que pertence a uma comunidade, é feita, mantida e gerida por ela.

3.2 Corrupção

Um milhão dessas máquinas terá um custo mínimo de 100 milhões de dólares – sem contar as estruturas para prover manutenção das mesmas. Com esse montante, o que se pode esperar desse projeto neste nosso país? É absolutamente garantido que muitas pessoas dele se aproveitarão para embolsar seu polpudo quinhão. A educação e a saúde (o que inclui o saneamento básico) são as duas áreas em que o "rouba mas faz" (quando faz) configura-se como um crime contra a humanidade. Em particular, a corrupção no setor de educação tem o terrível aspecto de envolver aqueles que estão sendo educados; um dos pilares da educação deveria ser o bom exemplo. Com nosso passado e nosso presente, é praticamente certo que haverá corrupção envolvida nesse projeto; se ela aparecer (coisa rara entre nós) teremos um mau exemplo, para os jovens que receberão essas máquinas, de algo que os envolve diretamente.

3.3 Roubo

No caso, a corrupção será de roubo de dinheiro público, mas a isso já estamos mais do que acostumados. Porém, há outro tipo de roubo que se pode prever com segurança: o desses laptops, pois o roubo desses aparelhos é um dos mais comuns (meu próprio filho foi vítima desse tipo de assalto: dois bandidos seguiram de moto seu táxi desde o aeroporto e, quando ele parou em frente a nossa residência, ameaçaram-no com um revólver e levaram seu laptop). Imagine-se uma criança carregando seu computador na rua. Já se imaginou que prato cheio para nossa enorme safra de marginais? Conheço várias pessoas que tentam disfarçar ao máximo que estão carregando o seu computador. Ora, se todas as crianças e jovens de uma escola estatal ganharem um laptop, qual o ladrão que não vai aproveitar-se desse conhecimento e da fraqueza das crianças e jovens? Não se venha com a história de que se poderá, por exemplo, proibir a venda desses computadores. Se há algo que é quase inexistente neste país em todas as áreas é a fiscalização. E, se ela existe, em geral é corrupta.

Pois bem, imagine-se a frustração das crianças e jovens cujos computadores forem roubados! Além disso, caso isso aconteça com vários alunos de uma classe, os professores da mesma não poderão contar com o fato de cada aluno ter um computador, para passar tarefas específicas usando essa máquina. O mesmo dar-se-á quando os computadores apresentarem falhas e necessitarem de manutenção; aliás, esta exigiria um sistema complexo para consertar as máquinas quebradas. Em países decentes, isso poderia ser feito pelo correio, algo inimaginável em nosso país, fora o custo envolvido. E por falar em custo, obviamente o custo de manutenção deverá ser somado ao custo total dos equipamentos, onerando significativamente todo o projeto (e contribuindo para a corrupção que certamente o rondará).

3.4 Dividendos políticos

Existe uma mentalidade de que o computador ajuda a educação e chega mesmo a ser imprescindível para ela. (No item 4 mostrarei que isso está errado.) Assim, um governo que dê de presente computadores a alunos dá a impressão de que está fazendo um grande bem educacional, e com isso ganhará votos. É muito provável que essa seja a principal motivação para a introdução desse projeto em nosso país. Afinal, se o interesse fosse realmente educacional, há muito já se teria melhorado nossa educação, como veremos a seguir.

3.5 Inclusão digital

Um dos argumentos que é usado para justificar o projeto "Um laptop por criança" é o fato de que alunos de escolas estatais são em geral de classes econômicas menos favorecidas que os de escolas particulares. Estes últimos têm acesso a computadores nas suas escolas e, principalmente, em casa, e essa situação prejudica o futuro dos primeiros.

Como mostrarei no item 4, as crianças e jovens que usam um computador têm seu desenvolvimento prejudicado, principalmente pela aceleração da intelectualização. Assim, a pretensa exclusão digital, segundo minha conceituação e segundo as pesquisas que relatarei em 4.5, só favoreceria crianças e jovens.

Suponhamos, no entanto, que a inclusão digital é algo importante, o que estou de acordo quanto a adultos. Como deve ser feita? M. Warschaer, relata experiências feitas na Índia [WAR 03]. Comprovou-se que a inclusão digital em pessoas com pouca escolarização só funciona quando existe o que se denomina "intermediador": uma pessoa que dá assistência aos que querem usar o computador, ensinando-os e ajudando-os a usá-lo e como obter as informações de que necessitam, por exemplo na Internet. O artigo menciona que "quiosques" abertos, de livre acesso e sem intermediador, simplesmente não traziam nenhum benefício. Nesse caso, as crianças e jovens, e mesmo adultos, acabam usando os computadores para coisas inúteis, como joguinhos eletrônicos, conversas on-line (chats), etc.

Assim, a verdadeira inclusão digital deve ser feita com salas apropriadas, e um intermediador que também dê manutenção à rede e aos equipamentos. Uma tal pessoa deveria obviamente controlar o uso dos equipamentos que é feito por crianças e jovens, impedindo utilização inadequada para a idade do usuário e para as finalidades da sala. Imagine-se quantas dessas salas poderiam ser implementadas com a verba do "Um laptop por criança"!

R. Hirata chamou minha atenção para um fator interessante contra esse projeto: a tendência é de que, no futuro, o computador estará em todo lugar; não será necessário que cada pessoa tenha o seu.

Aproveito para tocar rapidamente em cursos à distância (CDs), um dos possíveis usos do projeto "Um laptop por criança". Falou-se tanto na potência didática dos CDs, alardeou-se sua maravilha – e onde estão os seus resultados espetaculosos? Ouvi de pessoa que trabalha com tais cursos que eles só funcionam quando há um intermediador à disposição e quando as "classes" são de no máximo 20 alunos. No Brasil, temos ainda um problema específico: o fato de o brasileiro não gostar de seguir disciplinas rígidas. No entanto, CDs exigem enorme autodisciplina. Se uma criança ou jovem a tem, já perdeu sua infância ou juventude.

3.6 Prioridades

Um projeto educacional dessa monta deve ser examinado sob o ponto de vista de prioridade. No que é mais urgente investir-se em educação neste nosso país, com um ensino estatal em geral miserável? Em minha opinião, a nossa maior prioridade deveria ser o aumento de salário dos professores. Só é professor de escola estatal quem não consegue fazer praticamente mais nada profissionalmente além de ensinar. E, para sobreviver, muitos professores dão mais de 40 horas de aula por semana, em várias escolas. Pode-se imaginar o nível de suas aulas e o nível de sua paciência para com os alunos? Outras prioridades deveriam ser também o melhor preparo dos professores, bem como a melhoria das condições físicas das escolas: em muitas, nem há teto; quando há teto, não há chão com piso; quando há chão com piso, não há instalações sanitárias; quando as há, o aspecto da escola é desolador, muitas vezes lembrando uma prisão e não um belo e agradável hotel, como deveria ser (aliás, isso se aplica em geral também aos hospitais públicos).

Uma prioridade urgentíssima é a reintrodução de disciplinas de artesanato e artísticas. No antigo ginásio (atuais 5ª a 8ª séries), que cursei, todos os alunos de todo o Brasil tinham 4 anos de trabalhos manuais e de canto orfeônico, esse maravilhoso projeto introduzido por ninguém menos que Villa-Lobos (eu aprendi música na escola, posteriormente tornei-me músico amador, tendo chegado a ser concertista). Qualquer atividade artística de bom nível eleva e dignifica o ser humano, como já foi comprovado até em prisões (e na antiga FEBEM em São Paulo, com o projeto Guri de formação de orquestras infantis e juvenis). Pelo contrário, como veremos no item 4.6, o uso do computador degrada o ser humano.

Em termos de preparo dos professores, gostaria de aproveitar e perguntar algo aos leitores destas linhas que fizeram um curso de pedagogia ou uma licenciatura. Vocês aprenderam na faculdade que a atitude mais importante de um professor é amar seus alunos, respeitá-los como seres humanos e não tratá-los como objetos ou, pior ainda, como números ou nomes de uma lista de chamada?

Uma demonstração de que muita gente não entende o que é educação neste país e, por isso, trata os alunos como objetos, é a verdadeira campanha em curso para se acabar com a progressão continuada. É interessante notar que essa progressão foi introduzida no Brasil por causa de recomendação da UNESCO, que por sua vez baseou-se nos extraordinários resultados da Pedagogia Waldorf, onde a progressão existe em toda a escolaridade (não há repetições de ano – nem há notas!), desde a sua introdução por Rudolf Steiner em 1919. Afinal o que significa reprovar um aluninho de 7 a 10 anos, por exemplo? Simplesmente que ele não teve a responsabilidade ou a capacidade de estudar e de fazer as suas tarefas, como se fosse adulto! (Fora o fato de que notas são intrinsecamente ridículas, como tudo que mede alguma capacidade mental: o que significa uma nota 5 numa prova – o aluno sabia apenas metade de cada questão ou, corretamente, apenas metade de todas as questões?) Gostaria de fazer um apelo aos leitores: façam um esforço, tenham coragem de ir contra opiniões preconceituosas de que talvez tenham sido vítimas – principalmente nos meios acadêmicos – e vão visitar alguma escola Waldorf (ver diretório de escolas e de jardins-de-infância em www.sab.org.br). Vejam com seus próprios olhos os resultados da progressão continuada quando ela é bem feita (com preparo dos professores e dos pais), de um ensino intensamente artístico, e muitas outras características que distinguem as escolas Waldorf. Notem o rosto descontraído, sem tensões, dos alunos de todas as séries. No mundo todo, essas escolas são verdadeiramente públicas: pertencem sempre a uma associação sem fins lucrativos da comunidade de pais e professores. Os aspectos didáticos são determinados em cada escola pelo colégio de professores. Estendi-me sobre esse caso pois, se os laptops do projeto fossem ofertados para os alunos dos jardins-de-infância ou do ensino fundamental de qualquer escola Waldorf em qualquer lugar do mundo, garanto que eles seriam recusados. Isso decorre de uma compreensão diferente do que significa educação e o desenvolvimento de cada ser humano – e é disso que estamos urgentemente precisando!

Uma prioridade que considero essencial para a melhoria do ensino é a desestatização das escolas, que deveriam tornar-se verdadeiramente públicas. Por exemplo, o estado poderia repassar as verbas da educação para comunidades de bairro, que iriam então, sob eventual orientação e fiscalização de entidades independentes, construir e manter suas escolas, contratar e pagar professores, etc. Já se imaginou o quanto isso iria diminuir a corrupção na área de educação e quanto iria melhorar o nível do ensino? Alguém imagina que uma comunidade gostaria de ter uma escola péssima para seus filhos, como em geral são as nossas escolas estatais? Vou dar aqui dois exemplos reais disso.

No fim de 2005 tive a experiência de ensinar matemática para uma menina que tinha passado para o 3º ano do ensino médio estatal em Campos do Jordão, SP – uma cidade importantíssima do ponto de vista turístico. Qual não foi meu espanto ao descobrir que ela não sabia calcular com frações! Pior, em seguida descobri que ela não sabia fazer divisão quando o divisor tinha dois ou mais algarismos! Pior ainda, descobri por fim que ela não sabia nem a tabuada! Os pais, gente humilde que não tinha tido chance de estudar praticamente nada, estavam sacrificando-se para enviar os três filhos à escola, achando que eles estavam aprendendo algo – e sendo literalmente enganados por esse sistema educacional estatal miserável e cruel.

Logo após ter escrito o parágrafo anterior, em 6/4/07, fui ensinar matemática a J., que está na 7ª série (8ª, na nova seriação de 9 anos), de uma escola municipal também de Campos do Jordão. Os pais cursaram uma escolinha rural, e foram até a 4ª série. Pois bem, J. não sabia fazer nenhuma divisão, nem se o divisor tivesse apenas um algarismo. E não sabia a tabuada de cor – apesar de inteligente e deduzir multiplicações, como "9 vezes 5 é o mesmo que 10 vezes 5 menos 5", o que ele efetivamente calculou, de cabeça, para obter o primeiro resultado. Examinei seu caderno de matemática; havia um problema assim: "A carroceria de um caminhão tem 9 m x 7 m x 5 m; quantos paralelepípedos de 5 cm x 7 cm x 10 cm cabem nessa carroceria"? É de estarrecer. Primeiro, não é a carroceria que teria aquelas dimensões, e sim o baú construído sobre ela; em segundo, talvez se encontre um baú de caminhão com 9 m de comprimento; mas 5 ou 7 de largura ou de altura??? Por que não dar um exemplo realmente do mundo real, em vez de inventar um caminhão impossível? E alguém já viu um paralelepípedo de pedra com as dimensões dos dados? O professor simplesmente não sabe que, se usar exemplos reais, o interesse dos alunos aumenta muito. Para ilustrar medidas lineares, de superfície e de volume, peguei uma trena, abri em 1 m e fiz J. dar um passo grande com a mesma medida, depois, sem a trena, 3 passos para perfazer 3 m (foram necessárias 3 tentativas para atingirmos um erro de apenas 5 cm); medi um quadrado de 1 m de lado em uma mesa, mostrei na trena quantos cm tinha cada lado, mostrei o que significava os quadrados de 1 cm de lado desenhados com linhas e colunas (acompanhando em um papel); coloquei a trena em pé para mostrar como seria um cubo de 1 m de lado, falei das camadas planas de cubinhos e quantos havia em cada camada, etc. Enfim, fiz J. participar com todo o seu corpo da ilustração dos conceitos envolvidos, para que eles deixassem de ser meras abstrações sem nada a ver com o mundo real. Voltarei ao problema da abstração no item 4.2.

J. contou-me como o seu professor de matemática dá aula: passa um problema, "espera 30 segundos" (sic!) e logo dá a solução do mesmo. É óbvio, sem saberem tabuada e divisão, como se esperaria que os alunos resolvessem problemas como o de quantos paralelepípedos iriam caber na "carroceria" do caminhão? Fiquei absolutamente pasmo quando ele contou-me que uma professora teria dito à sua classe algo como: "Se quiserem estudar, ótimo, se não quiserem, dá no mesmo, pois no fim do mês meu pagamento é depositado em minha conta de qualquer maneira."

Nota-se, por esses exemplos absolutamente verídicos, reais e, fazendo uma generalização que talvez não seja indevida, que o ensino está péssimo provavelmente por que os professores não sabem dar, ou não querem se dar ao trabalho de dar aulas interessantes, que entusiasmem seus alunos. Não se importam se estes aprendem ou não. Mas isto é aqui no "Sul maravilha", como dizem muitos nordestinos; no nosso Nordeste, segundo uma participante de uma importante ONG que tem um extenso programa educacional, na época das eleições as escolas fecham, pois os professores são obrigados a fazer campanhas para a eleição dos candidatos dos partidos dos governos. Segundo ela, no Agreste, muitos professores são... analfabetos! E é nessas condições que se pretende dar um computador a cada aluno?

Jamais, repito, jamais computadores irão consertar essas calamidades educacionais. Pelo contrário, irão piorar a situação, e muito: para que os alunos irão querer aprender a fazer contas se o programa de calculadora do computador poderá fazê-las para eles? Com isso, terão deixado de fazer o desenvolvimento intelectual envolvido no aprendizado da tabuada, das contas, e da matemática. Isso nos remete a um fator absolutamente essencial: é imperioso resolver os problemas educacionais em sua raiz, em lugar de gastar fábulas com falsos paliativos. Nesse sentido, o projeto em questão pode ser considerado como "circo" para desviar a atenção dos problemas gravíssimos, uma verdadeira falência, do nosso sistema educacional estatal. Em vez de se dar alimento nutritivo ao subnutrido, está planejando-se dar e ele gostosos bolos contendo unicamente amido e uma porção de aditivos químicos que fazem mal à saúde...

Na página www.laptop.org/vision/mission/ do projeto OLPC, no cap. "It is time to rethink this equation", é dito que, nos países "pobres" os orçamentos para educação são muito baixos em comparação com os EUA e que, mesmo dobrando ou quadruplicando aqueles orçamentos, não se conseguirá o suficiente para melhorar a educação. Afirma, além disso, que os investimentos tradicionais, como "construir escolas, contratar professores, comprar livros e equipamento" é bom mas insuficiente. E aí vem, no próximo item, a panacéia: dar um laptop para cada criança, para que ela aprenda a aprender (ver a esse respeito o item 4.4). Como se, sem um mínimo de escolarização, fosse possível aprender qualquer coisa além do que a própria vida ensina – do que o computador não tem nada. Se o computador funcionasse na educação, o que mostrarei em seguida que não é o caso, a panacéia proposta seria literalmente colocar o carro à frente dos bois.

4. Considerações universais

Neste item vou abordar meus argumentos para ser absolutamente contra o uso de computadores por crianças e jovens, pelo menos até o início do colegial. Vou tentar não me estender, pois já publiquei muito sobre isso. Vejam-se meu livro Meios Eletrônicos e Educação: uma visão alternativa [SET 05] e muitos artigos em meu site, especialmente "Computadores na educação: por que, quando e como" e o artigo que é uma crítica a um artigo de capa de uma revista de ampla circulação, particularmente o seu item 4, onde coloco uma resenha de pesquisas recentes sobre os impactos negativos dos meios eletrônicos. Meus argumentos baseiam-se no que é um computador, no estado físico, emocional e mental dos seus usuários, e a conceituação de desenvolvimento da criança e do jovem que é a base da Pedagogia Waldorf, e vem sendo aplicada com sucesso no mundo todo há quase 90 anos.

4.1 O computador e seu uso

O computador é uma máquina matemática. Qualquer programa é um formalismo matemático, uma seqüência de ativações de funções de manipulação de símbolos. Qualquer comando que se dê ao computador, seja na forma de texto (por exemplo, os que se usam na janela de prompt do Windows, ou parâmetros como na especificação de margens para impressão) ou sob forma da ativação de um ícone, produzem a execução de ações do computador que consistem na execução de funções matemáticas de processamento de símbolos. (Quantas pessoas sabem que um computador não soma? O que ele faz é combinar símbolos de modo que o resultado é o de uma soma.) Portanto, para se usar um computador é necessário exercer um pensamento matemático. Como as funções e a linguagem são muito diferentes da matemática usual, as pessoas não percebem que estão sendo forçadas a usar uma linguagem formal e usar um raciocínio matemático. Mas é impossível dar qualquer comando a um computador sem que se seja forçado a pensar lógico-simbolicamente e expressar esse pensamento de maneira formal. Esse pensamento deve enquadrar-se nas funções apresentadas pelo programa sendo usado. Isso significa que o usuário deve pensar de tal modo, que seu pensamento possa ser expresso por meio de um comando aceito pelo computador. Um exemplo trivial é alguém usando um editor de textos e querendo fazer um alinhamento vertical de um parágrafo: ele é obrigado a escolher um dos ícones (no caso do MS Word, com hints "Alinhar à esquerda", "Centralizar", "Alinhar à direita" ou "Justificar" – aliás, palavra transliterada do inglês e totalmente errada em português). Ele não pode pensar em alinhar automaticamente um texto com outro tipo de alinhamento, por exemplo em forma triangular (talvez em uma poesia concreta, ou uma mensagem de Natal em forma de árvore...), ou alternando em um parágrafo linhas alinhadas à esquerda e à direita. Denomino esse pensamento que deve ser exercido de tal modo que possa ser introduzido na máquina, e corretamente interpretado por ela, de "pensamento maquinal".

4.2 Desenvolvimento da criança e do jovem

Qualquer um pode observar que crianças não pensam e não se expressam formalmente, o que é mostrado, por exemplo, pelos erros gramaticais. Até os 8 anos de idade, a criança sadia nem mesmo distingue fantasia de realidade; de fato, quanto menor a criança mais ela vive num mundo animista, pleno de fantasia. Isso acontece desde que ela não tenha já perdido uma boa parte de sua capacidade de imaginar, o que é garantidamente produzido pelo uso de telas, seja na TV, nos jogos eletrônicos ou no computador . Nas telas, as imagens já vêm prontas e não há nada mais a imaginar; não é à toa que M. Spitzer deu a seu extraordinário livro o título que, traduzido, seria "Cuidado, Tela!" [SPI 05].

Forçar uma criança a pensar e se expressar formalmente vai totalmente contra sua natureza. Quando uma criança usa um computador, ela é forçada a pensar e a agir como um adulto. Em outras palavras, nesse caso está se roubando a infância da criança. Isso é uma tragédia, pois em educação e no desenvolvimento individual não pode haver queima de etapas: um nenê não aprende a andar antes de ficar em pé, não se estuda álgebra antes de aritmética, ou fisiologia antes de anatomia. A criança que não passar plenamente pela fase infantil tem grande chance de se tornar um jovem ou um adulto desajustado (e como se vêm esses casos hoje em dia – quando eu era criança e jovem, jamais havia ouvido falar em psicólogo ou em terapia...).

Uma maneira garantida de roubar a infância de uma criança é fazê-la usar um computador.

Com jovens, a coisa não é tão maléfica. No entanto, na conceituação de desenvolvimento usada na Pedagogia Waldorf, o jovem só deveria exercer um pensamento puramente lógico a partir do ensino médio. É nessa fase que o pensamento libera-se e se individualiza, e a capacidade de abstração pode ser voltada para formalismos que não têm nada a ver com a realidade – como a prova de teoremas na matemática. Portanto, a recomendação é clara: crianças e jovens não deveriam usar um computador antes do colegial.

4.2 Educação descontextualizada

Toda educação, na escola e no lar, é altamente contextual, no sentido de ser adequada para cada criança ou jovem. Por exemplo, uma professora dá uma aula obviamente tendo em conta as aulas anteriores que deu para aquela classe. Se ela for uma boa didata, dará um mesmo assunto de maneira diferente para cada classe – certamente, de uma maneira diferente para cada série. Na Pedagogia Waldorf, a contextualização é enorme: os vários professores de uma classe integram os conteúdos de suas matérias; por exemplo, se o professor de história estiver falando sobre a China, o de artes fará os alunos desenharem e pintarem no estilo chinês antigo.

No lar, tomemos como exemplo um pai ou mãe que vão comprar um livro para seu filho (não é um bom exemplo neste país de relativamente pouca gente que aprecia livros...). Idealmente, ele ou ela examinam os livros à venda, e escolhem um que seja adequado para a maturidade de seu filho, ou cujo estilo corresponda ao que consideram adequado. A propósito, é uma grande dificuldade e muito frustrante para mim e minha esposa tentarmos comprar aqui no Brasil livros para nossos netinhos, os de 3 a 10 anos: são raríssimos os livros infantis à venda que contêm figuras artísticas, apropriadas para a ingenuidade infantil; o que se encontram são ilustrações grotescas, monstruosas, caricatas – por exemplo, de animais imitando seres humanos ou no horroroso estilo de histórias em quadrinhos. Os textos não são em geral adequados para crianças, ou os originais são terrivelmente deturpados no estilo Walt Disney.

Enfim, toda a educação é, tradicionalmente, contextual. Pois bem, a educação feita com o computador e, especialmente, por meio da Internet, é totalmente descontextualizada em relação à particular criança ou jovem que o usa. De fato, mesmo se houver um certo software educacional (por exemplo, para ensinar a contar ou a ler), ele obviamente não é produzido para um determinado usuário, mas para uma massa deles. Ora, toda educação que não respeita o indivíduo em seu contexto e maturidade é na verdade uma deseducação – e é isso que produz o computador (idem para a TV e os joguinhos eletrônicos, mas esses são outros assuntos, que abordei em meu livro citado e em vários artigos em meu site).

4.3 O ensino libertário com a Internet

Além do problema da falta de contextualização da Internet em relação à criança e ao jovem que a usam, ela apresenta um gravíssimo problema: o fato de eles não terem o discernimento para escolher o que é apropriado ao seu contexto e à sua maturidade. Um pai pode eventualmente escolher um programa para carregar no computador (como um para ensinar a ler ou fazer contas), mas se a criança ou jovem fazem acesso à Internet sem o constante controle de um adulto, eles terão um mundo virtual à sua disposição.

Muitas pessoas consideram que é benéfico que crianças e jovens tenham liberdade de acesso à Internet, pois assim aprendem a discernir e a criticar. Só que, se uma criança ou jovem aprendem a discernir o que é bom ou mau para eles, e a serem críticos, não serão mais infantis ou juvenis – terão acelerado seu amadurecimento, o que é terrível do ponto de vista educacional. Na educação, há hora para tudo – apesar de se ter perdido a antiga intuição de que isso deve ser respeitado, como no caso da aceleração do aprendizado da leitura. Por exemplo, na União Européia há (ou está sendo planejada) uma nova lei obrigando as crianças a aprenderem a ler aos 5 anos de idade. Na conceituação e na prática da Pedagogia Waldorf, isso é um total absurdo: nela, a idade mínima recomendada é de 6½ a 7 anos para o começo desse aprendizado, o qual é feito muito lentamente pois é o primeiro grande esforço de abstração intelectual exigido das crianças, já que as nossas letras latinas são símbolos mortos, totalmente abstratos (ver artigo em inglês sobre esse tópico em meu site).

O uso da Internet na educação, especialmente quando não há nenhum controle dos sites visitados, configura uma educação libertária. Sou totalmente contra esse tipo de educação: as crianças e jovens sabem, pelo menos inconscientemente, que necessitam de orientação constante e são dependentes dos adultos. A falta dessa orientação, coisa muito comum hoje em dia, provoca vários distúrbios psicológicos, como insegurança, desconhecimento de limites, distúrbios de comportamento, etc. É óbvio que se deve dar alguma liberdade para uma criança, e ainda mais para um jovem. Por exemplo, deixar a criança escolher qual o brinquedo com o qual quer brincar em seguida, dentre os disponíveis e já evidentemente selecionados pelos pais de acordo com o contexto da criança e a relevância educacional – muito antes de se falar largamente em "brinquedos educativos", de materiais naturais, eram os que eu e minha esposa dávamos a nossas crianças, a partir de 1966.

Não considero que haja nenhuma necessidade de uma criança ou jovem usarem a Internet. Mas se algum pai achar, erroneamente, que isso é essencial para seus filhos, minha recomendação é que esteja sempre, constantemente, ao lado deles enquanto usam a Internet, controlando as páginas às quais é feito o acesso.

A mesma consideração vale para o computador. Aprender a usá-lo também não é necessário – certamente todos os adultos de hoje com mais de 30 anos não aprenderam a usar um computador quando crianças, e aprenderam facilmente a fazê-lo quando adultos. Não se pode permitir que uma criança use um computador sozinha, carregando nele os programas que bem entende (na verdade, não entende...), etc. Isso significa que, em uma família, um computador deve ser sempre dos pais e nunca de uma criança ou jovem. Infelizmente, muitos desses últimos têm computador em seu quarto de dormir, totalmente fora do controle dos pais. Isso se aplica, em muito maior escala, para a TV, o que constitui uma verdadeira tragédia – veja-se, por exemplo, o excelente livro de Susan Linn, Crianças do Consumo: a Infância Roubada [LIN 06]. Ora, o projeto "um laptop por criança" visa justamente dar um computador a cada criança, que o levará a todos os lugares (enquanto não for roubado...), podendo naturalmente usá-lo sem absolutamente nenhum controle. Pior falta de conhecimento educacional não me é possível imaginar. Em particular, tenho certeza de que a maior utilização, naturalmente descontrolada, desses computadores, será com joguinhos eletrônicos, principalmente os violentos, pois são os mais apreciados. Para uma resenha de pesquisas que mostram os terríveis efeitos desses jogos, veja-se o item 4 do meu artigo criticando uma matéria de capa de uma revista nacional de larga circulação, em meu site.

4.4 Aprender a aprender

Como citei no fim do item 3.6, no site do projeto OLPC diz-se que o computador permite que a criança "aprenda a aprender". Isso cheira a Papert e seu sistema Logo [PAP 85], citado na história que levou à criação do projeto OLPC (ver em www.laptop.org/vision/progress/). Para uma crítica ao uso dessa linguagem de programação, veja-se o capítulo "A geometria da tartaruga", em meu livro [SET 88] que, infelizmente, está esgotado; pretendo digitar e colocar em meu site a minha parte "O computador no ensino: nova vida ou destruição? Brevemente, Logo, sendo uma linguagem de programação, força a criança ou jovem a programar; acontece que não há atividade mais abstrata e formal do que programar um computador, pois essa atividade é equivalente a se provar teoremas na matemática – com a diferença que na Logo (uma interessante linguagem de processamento gráfico simples) pode-se ver o resultado geometricamente exibido na tela. Já foi demonstrado que uma criança decora certos comandos da linguagem sem entender o que significam. Papert prega que crianças devem usar Logo a partir de 4 anos de idade – mas com que idade elas compreenderão que "direita 90" (right 90, na linguagem original) é um comando em que o cursor ("tartaruga", no jargão da Logo) é girado a 90º?

Crianças aprendem sozinhas muito bem o que devem fazer para aprender, por exemplo brincando, movimentando-se, etc., tudo feito inconscientemente. No entanto, o uso do computador exige consciência e atenção – o mesmo grau de atenção necessário para fazer matemática correta (experimente-se fazer uma conta armada sem prestar atenção, para se ver o resultado...). No entanto, a consciência exigida no uso geral do computador e, em particular, usando Logo, é totalmente inapropriada antes do colegial, pois estar-se-ia acelerando a auto-consciência e o autocontrole sobre um sistema formal, lógico-simbólico.

É impressionante como Papert ignora as características fundamentais das crianças e dos jovens. No próprio projeto OLPC, encontra-se na página http://www.laptop.org/vision/mission/ sua afirmação de que "O computador provoca de maneira única o aprender sobre o aprender [learning learning], por permitir a crianças ‘pensar sobre o pensar’ [think about thinkink], de maneiras que são impossíveis de outro modo." Ora, pensar sobre o pensar exige independência, autoconsciência, individualização e liberdade do pensar que só deveriam ocorrer muito mais tarde. Normalmente, jamais pensamos sobre nosso pensamento, pois este concentra-se nas observações sensoriais, em recordações ou em associações mentais. Pensar sobre o pensar é um processo de introspecção e significa autocontrolar o processo mental. É uma atividade típica da meditação, e só deveria ser exercida por adultos. Pergunte-se a uma criança ainda não deturpada pelos meios eletrônicos onde ela pensa, e ela nem dirá que é com a cabeça! Pergunte-se como o pensamento dela se desenrola, e ela olhará o interlocutor com um ar de que não está entendendo o que ele quer. Se forçada em crianças e jovens, como acredita Papert que o uso de Logo provoca, a consciência do processo de pensar provoca uma intelectualização e um desenvolvimento precoces que certamente significam uma aceleração indevida do desenvolvimento intelectual; é um roubo da infância e da juventude, que não deveriam ter essas preocupações. É importante entender claramente: se uma criança aprende a fazer uma conta armada, por exemplo multiplicações de números com vários algarismos, ela simplesmente decora os passos que deve seguir, e os segue sem se conscientizar de que o seu pensamento tem que seguir aqueles passos. Usando a linguagem Logo de Papert, a criança é forçada a pensar em comandos e funções matemáticos, portanto abstratos, mas de um grau de abstração muitíssimo maior do que um algoritmo de multiplicação.

4.4 A maturidade exigida pelo computador

A questão do autocontrole leva-nos ao problema da maturidade. Quando alguém usa um computador, tem total liberdade de ação, limitada pelo que o software oferece. Por ser uma máquina virtual, não há perigo de causar desastres físicos, como seria o caso, por exemplo, do uso de um martelo. Os desastres serão volitivos, emocionais e mentais mas, como isso não é aparente, crê-se largamente que o computador seja inofensivo. Exemplo de efeitos são a excitação que um programa atraente pode causar, ou a excitação pelo fato de não se conseguir fazer algo que se tem certeza de ser possível (como lembrar-se de um comando já usado, ou encontrar-se um certo site na Internet). Esses são alguns dos fatores que levam pessoas a ficarem usando o computador sem conseguirem parar, o que mina a força de vontade; para mais detalhes, veja-se o meu artigo "A miséria da computação", em meu site.

A liberdade apresentada pelo computador atinge o paroxismo no uso da Internet. Nesse caso, o usuário tem um mundo virtual à sua frente, sendo necessário um enorme poder de discernimento e de autocontrole para que ele não seja atraído por páginas que não está buscando, ou que sejam impróprias para sua maturidade. É também necessário ter um alto grau de autoconsciência e autocontrole para parar de usar a Internet, pois o material nela exibido é em geral feito para atrair (compare-se, por exemplo, com o site www.sab.org.br, do qual sou o webmaster e que organizei de forma puramente informativa: ele não tem cosméticos, além de uma aquarela de fundo e figuras de pinturas, fotos de objetos relevantes ou de logotipos de instituições). A questão de impropriedade não se aplica apenas a sites pornográficos ou pedófilos, que logo vêm à mente. Esse seria o caso, por exemplo, de uma criança que lesse na Internet um texto sobre o buraco de ozônio, e se apavorasse tanto que não mais saísse de casa. O jornal "O Estado de São Paulo de 8/4/07, em sua página A24, traz um artigo intitulado "Ambiente tira o sono das crianças", onde é relatado o "efeito avassalador" que as notícias sobre o aquecimento global têm tido sobre crianças, que vivem no medo de suas conseqüências. O que obviamente não se encontra nesse artigo é justamente a influência enorme que os meios de comunicação, especialmente a TV, quem sabe também a Internet, têm indevidamente sobre crianças e jovens, em particular nesse tema.

Ora, crianças e jovens não têm o poder de discernimento, tanto pela falta de conhecimento como pela capacidade mental restrita, bem como não têm o autocontrole para não serem atraídas pelo visual (tipo show, como na televisão, por exemplo) ou conteúdos inadequados para a maturidade (como o caso dos sites pornográficos), bem como para limitar o tempo que gastam no uso do computador ou da Internet.

Uma das conseqüências do uso de computadores por crianças e jovens é que eles acabam perdendo um enorme tempo brincando com o computador, que deveriam dedicar aos estudos e aos trabalhos escolares. Há anos atrás tive várias experiências de trazer para meu Instituto alunos do ensino médio para um workshop que denominei de "Dia da Computação" (ver sua descrição em meu site). Nele, eram dadas noções teóricas e práticas do que é um computador, para que ele serve e sua influência em seus usuários. Pois ficou claríssimo para mim e meus colaboradores, estudantes de meu Instituto, que somente ao redor dos 17 anos o jovem começa a ter capacidade de encarar o computador seriamente, como um instrumento de trabalho e não mais somente como um brinquedo, comprovando minhas conclusões conceituais. Examinem-se os programas ditos "educacionais": eles são atraentes pois funcionam como joguinhos eletrônicos; aliás, qualquer software, para ser atraente, deve transformar o computador em um vídeo game. Obviamente, adultos podem ser atraídos por textos interessantes, sem cosméticos gráficos.

Tenho sido convidado a dar palestras em escolas, por pais e mestres preocupados com a queda do rendimento escolar dos alunos. Pesquisas estatísticas já demonstraram que, quanto mais usam um computador, mais cai o rendimento escolar dos alunos. Mas passemos a elas.

4.5 Resultados de pesquisas

O livro de Armstrong e Casement traz um capítulo inteiro colocando sérias restrições ao uso do computador para ensinar a ler ([ARM 01], pp. 89-106). Eles citam vários estudos sobre um dos mais populares desses programas, o WTR (Writing to Read) da IBM, projetado para ajudar crianças da pré-escola e da 1ª série a desenvolverem habilidades de leitura e escrita, e indicam que "o programa apresentou pouco ou nenhum efeito na capacidade de ler e escrever das crianças" (p. 106). A descrição que eles fazem do programa é de estarrecer: é um verdadeiro condicionamento, com várias etapas, denominadas "estações"; um sinal sonoro toca a cada 15 minutos avisando as crianças que devem mudar de "estação". Curiosamente, apenas 2 dessas "estações" usam o computador (p. 105); na última, "as crianças utilizam diversos materiais – varetas, argila, fios e recortes de papel – para formar palavras, letras e frases" (idem). Quem sabe é justamente nas estações que não usam o computador que as crianças aprendem algo...

Angrist e Lavy [ANG 01] analisaram a situação criada em Israel, onde houve um enorme programa, denominado de Tomorrow-98, de instalação de computadores em escolas, que iniciou em 1994 e tinha como objetivo atingir uma razão de 10 estudantes para cada computador nas escolas em 1998. O estudo dos autores analisou resultados em 200 escolas em 1996. Foram passados testes de matemática e de hebraico para classes de 4as e 8as séries. Em suas conclusões, os autores escrevem que "Os resultados relatados aqui não dão suporte à visão de que CAI (Computer-Aided Instruction) melhora a educação. Usando várias estratégias para estimativas, encontramos uma relação consistentemente negativa e marginalmente significante entre o uso de computadores por programas induzidos e notas de 4as. séries em matemática. Para outras classes e assuntos, as estimativas não foram significantes, apesar de serem negativas em sua maioria. ... [foi encontrado] um efeito negativo de CAI nas notas de matemática nas 8as. séries nos modelos que levaram em conta as cidades." Eles chamam a atenção para o altíssimo custo de instalação de computadores em escolas, mostrando que em Israel o custo por escola "iria pagar os salários de até 4 professores". Levando em conta a depreciação dos aparelhos e instalações, acrescenta-se ainda mais um professor. A conclusão final é de que "Fazendo um balanço, parece, o dinheiro gasto em CAI em Israel teria sido melhor utilizado em outros meios [inputs]."

Fuchs e Woessmann [FUC 04] fizeram um estudo que provocou grande impacto: analisaram o resultado do exame PISA (Programme for International Student Assessment) de alunos de 15 anos de 31 países, conduzido em 2000, comparando o resultado do desempenho em matemática (96.855 estudantes) e leitura (174.227), com o uso de computadores. Eles tiveram o cuidado de fazer uma análise multivariada, isto é, mantendo certas variáveis constantes para eliminar sua influência no resultado de outras, chamando a atenção para o problema de análises bivariadas – a propósito, Spitzer traz um exemplo muito ilustrativo sobre as últimas [SPI 05, p. 174]: fazendo-se uma correlação entre o tamanho do sapato e o salário, ver-se-á que ela será altamente positiva: quanto maior o número do primeiro, maior o segundo; pudera, as mulheres infelizmente continuam ganhando em média menos que os homens... O estudo citado comprovou que "Enquanto a correlação bivariada entre disponibilidade de computadores na escola e desempenho dos alunos é estatisticamente significante e fortemente positiva, a correlação torna-se pequena e estatisticamente indistinguível de zero se outras características escolares são mantidas constantes. ... No lar, [há uma] relação negativa do desempenho dos estudantes com a disponibilidade de computadores. ... a relação entre resultados dos estudantes e o uso de computadores e da Internet na escola mostra uma distribuição em forma de U: Isto é, estudantes que nunca usam computadores ou a Internet na escola mostram desempenho menor do que estudantes que às vezes usam-nos na escola. Mas estudantes que os usam muitas vezes por semana têm resultado ainda pior. Damos duas possíveis explicações para esse fenômeno. Por um lado, professores podem refrear-se de usar computadores com estudantes que têm baixo nível de habilidade. Assim, a primeira parte da distribuição pode simplesmente refletir um viés de habilidade, e a segunda parte da distribuição pode refletir o fato de que o uso de computadores pode realmente estar diminuindo o aprendizado dos alunos." Eles fazem um comentário ao resultado negativo em relação ao uso de computadores nos lares: "A simples disponibilidade de computadores no lar pode, em primeira instância, servir às crianças como dispositivos para jogar jogos de computadores. Isso os desvia do estudo afetando negativamente, assim, o seu desempenho educacional." Finalmente, "Ter um computador em casa e usá-lo na escola quase que certamente aumentará algumas habilidades de uso de computadores. O que nosso resultado sugere é somente que isso pode vir às custas de outras habilidades."

Em minha conceituação, o problema de influência negativa do computador no rendimento escolar não é uma conseqüência apenas do tempo que os alunos gastam com ele.

4.6 Degradação do ser humano

Há muitas outras influências nocivas do computador, tanto para crianças e jovens como para adultos. No primeiro caso, elas são muito piores, pois supõe-se que o adulto já tenha se formado; um ser em formação é muito mais sujeito a influências nocivas em sua mente – que é justamente onde o computador mais atua, por exemplo impondo um pensamento lógico-algorítmico, como já expus. Não vou me alongar neste tópico, passando a somente citar os fatores que considero mais importantes neste item, com brevíssimos comentários entre parênteses. Se algum leitor quiser, eu poderia detalhar qualquer um dos tópicos.

- Indução de admiração pelas máquinas. (O computador ultrapassa o ser humano em muitas funções do pensamento e é incompreensível para crianças e jovens.)

- Indução da mentalidade de que as máquinas são mais perfeitas do que o ser humano. (Nunca houve uma metáfora tão potente quanto o computador para o fato – errado – de o ser humano ser uma máquina; veja-se em meu site o artigo "I.A. – Inteligência Aritificial ou Imbecilidade Automatizada? As máquinas podem pensar e ter sentimentos?")

- Indução de mentalidade materialista. (Ver meu artigo "Por que sou espiritualista", em meu site.)

- Prejuízo para a sociabilidade. (Em geral, o uso de um computador é feito isoladamente; os contatos sociais são virtuais e não presenciais; há indução de mentalidade de previsibilidade e determinismo, que não são características humanas.)

- Indução de mentalidade de fazer tudo rápido e várias coisas simultaneamente; prejuízo para as capacidades de concentração, de contemplação e de paciência.

- Indução de mentalidade reducionista. (Uma das técnicas de resolver problemas com o computador é divide and conquer, isto é, partir um problema em picadinhos e resolver cada um; mas isso não se aplica a seres vivos, que sempre constituem uma totalidade, como já foi há séculos apontado por Goethe – um exemplo atual seria o de uma célula que, tirada de um organismo, não tem mais todas as funções que tinha naquele.)

- Prejuízo para pensamentos qualitativos e sem noção lógica de causa-e-efeito. (Em geral, nos seres vivos não se podem determinar claramente causas e efeitos; muitas vezes os efeitos precedem as causas, como o caso da formação dos pulmões no embrião, que só respirará depois de nascer, isto é, nesse caso o efeito, formação dos pulmões, precede a causa, a respiração.)

- Prejuízo para a criatividade. (Esta deve ser exercitada em um espaço mal definido, como as relações sociais e as artes; o computador apresenta um espaço matematicamente bem definido; aliás, atividades artísticas são o antídoto que recomendo para quem precisa usar muito o computador – veja-se em meu site o ensaio "Um antídoto contra o pensamento computacional".)

- Prejuízo para a memória. (Exercício unilateral da memória com entidades lógico-simbólicas e deturpação do pensamento; não há mais necessidade de guardar informações que podem ser classificadas e obtidas rapidamente no computador.)

- Indução da mentalidade de que o ensino é uma brincadeira. (Para ser atraente, o computador deve ser apresentado como um joguinho eletrônico, cf. 4.4.)

5. Considerações finais

É absolutamente essencial que, no mundo inteiro, isto é, tanto em países ricos como pobres (eufemisticamente denominados de "em desenvolvimento" – alguém em sã consciência poderia afirmar que o Brasil vai um dia chegar a ser desenvolvido e tendo justiça social, com a corrupção, a má administração, a inépcia, a falta de cultura e a ganância dos políticos e governos que temos e elegemos?), é imperioso e urgente mudar o ensino. Mas a mudança mais essencial é que ele se torne mais humano, e não mais tecnológico. Não é à toa que o excelente livro de R. Lanz, com original no vernáculo, tem o título A Pedagogia Waldorf – Caminho para um Ensino mais Humano [LAN 98] Não é introduzindo tecnologia (máquinas) no ensino é que ele se tornará mais humano, muito pelo contrário. As máquinas são, de certa forma, subnaturais – compare-se, por exemplo, a riqueza da história de um seixo arredondado, ou de uma pedra em forma de cristal, com qualquer máquina, por mais complexa que seja. É sintomático que a Pedagogia Waldorf, que justamente procura tratar as crianças e jovens com muito amor e humanidade, seja tal que nenhuma escola Waldorf digna desse nome use computadores no ensino antes do ensino médio – e para ensinar o que é um computador e como usá-lo como instrumento útil, por exemplo para os alunos do último ano do colegial obterem material na Internet para a confecção, usando um editor de textos, de seus (em geral, excelentes) trabalhos de conclusão de curso. Novamente, incito os leitores a terem coragem e visitarem uma escola Waldorf para constatarem tudo isso por si próprios. Em particular, alguém que visita um jardim-de-infância Waldorf, em qualquer lugar do mundo, sente um ambiente tão carinhoso e aconchegante que tem vontade de voltar a ser criança... (Ver diretórios de escolas Waldorf na América Latina e de jardins-de-infância no Brasil em www.sab.org.br.)

Para uma proposta de currículo de computação dentro do espírito Waldorf, ver meu artigo "Computadores na educação: por que, quando e como", em meu livro [SET 05] e, em versão anterior, em meu site.

Minha preocupação com os efeitos maléficos do uso de computadores por crianças e jovens, e minha conclusão de que não devem ser usados por eles, inclusive na educação, no lar e na escola, é muito antigo, tendo de longe precedido o advento dos microcomputadores (naquela época os computadores eram tão caros que o perigo de seu uso em educação era remoto). De fato, já em 1976 publiquei artigo onde me manifestava contra o uso de computadores por crianças (ver o artigo "O computador como instrumento do cientificismo", em meu site).

Curiosamente, desde 1972 tenho me preocupado e dado palestras contra a poluição e sobre alimentos naturais e integrais (fui eu quem introduziu em português a expressão "produto natural", em 1976). Levou mais de 30 anos para que essa consciência se tornasse relativamente geral. Quantos anos ainda vão levar para que um grande público me dê razão e conclua que, quanto mais complexa, mais a tecnologia prejudica o ensino e o desenvolvimento de crianças e jovens? Um argumento padrão é que nosso mundo está cada vez mais tecnológico, e eles devem entrar em contato com as máquinas o mais cedo possível. Isso é uma falácia total. Como eu citei em 4.3, há tempo para tudo na educação; pouquíssimos adultos de hoje, certamente nenhum com 30 anos ou mais, aprenderam a usar computadores quando crianças – e não tiveram problema algum para aprendê-los muito mais tarde. Afinal, automóveis fazem parte (infelizmente) de nossa cultura, e não é por isso que crianças devem aprender a guiá-los. Isso é consenso geral, pois eles podem causar acidentes físicos, ao passo que os acidentes causados invariavelmente pelos meios eletrônicos – TV, jogos eletrônicos e computadores – são volitivos, emocionais e mentais e, portanto, não tão aparentes.

Urge reconhecer que os problemas ambientais que estamos sofrendo são conseqüência da mentalidade de endeusar toda a tecnologia e colocá-la a serviço do egoísmo e da ganância. É esse endeusamento da tecnologia que está por detrás da mentalidade do projeto "Um laptop por criança" que citei no início: quanto mais tecnologia no ensino, melhor. A melhoria – e talvez sobrevivência – da humanidade passa necessariamente por uma mudança de mentalidade, colocando-se as máquinas em seu devido lugar, e libertando-nos da escravidão que elas nos impuseram por nossa própria escolha (a esse respeito, ver meu artigo "A missão da tecnologia", em meu site). Os desastres volitivos, emocionais e mentais causados pelo uso de computadores por crianças e jovens devem parar – mas para isso precisamos ter consciência do mal que eles fazem. Este parágrafo já estava escrito quando apareceu, no caderno Link de 9/4/07 do jornal O Estado de São Paulo, pp. L1, L6 e L7, uma matéria justamente falando sobre o "endeusamento" da tecnologia, e os problemas psicológicos, especialmente estresse, que os aparelhos eletrônicos estão causando, em especial o computador. Tudo isso, com adultos. Imagine-se o impacto negativo nas crianças e jovens!

Minha esperança é de que neste país de governos em geral ineficientes e ineptos, em todos os níveis, mesmo se esses laptops forem distribuídos, eles logo pararão de funcionar por falta de uma estrutura eficiente de manutenção dos mesmos.

Uma palavra aos meus colegas acadêmicos, inclusive de minha universidade, que estão colaborando com o projeto "Um laptop por criança". Sou totalmente pela liberdade acadêmica e de pesquisa (mas não sou a favor da liberdade de produção pelas indústrias!). Assim, minha campanha contra essa sua atividade vai limitar-se, como sempre, aos meus escritos, a palestras e a entrevistas – por exemplo, não tenham medo de que irei fazer piquetes em frente a seus laboratórios. Acho que cada cientista deve, por sua própria e livre iniciativa, decidir o que é sadio para a humanidade, e pesquisá-lo em liberdade. Se tiverem objeções contra meus argumentos, vamos discuti-los, pessoalmente ou em público; quem sabe eu não tenho razão, minhas preocupações são infundadas, e vocês podem tranqüilamente continuar achando que estão contribuindo para um real progresso, e não uma decadência, da humanidade. No entanto, se não tiverem bons argumentos contra os meus, imploro que tenham consciência e não colaborem com esse projeto que, em minha conceituação, tem como finalidade (consciente ou inconsciente) a destruição da infância e juventude. Essa destruição começou, parece-me, na década de 1950; até lá, as crianças e jovens eram relativamente protegidos pela intuição dos pais e por tradições sadias; infelizmente, ambos praticamente acabaram. Agora estamos presenciando um imenso ataque àqueles pobres indefesos, como, por exemplo, mostrou magnificamente Susan Linn em seu extraordinário livro que já citei em 4.3, quanto à indução do consumismo em crianças e jovens pela TV [LIN 06].

Todos estamos cientes da terrível destruição da natureza atualmente em curso. A intenção sub-reptícia deve ser acabar com a humanidade, e é óbvio que um ataque direto ao ser humano também iria concretizar-se. E nada melhor nessa linha do que começar com a deturpação e degeneração das crianças e jovens, impedindo seu desenvolvimento harmônico e sadio, para se gerarem mais tarde adultos anti-sociais, sem compaixão, sem criatividade, passivos, com idéias fixas, fanáticos, como estamos encontrando cada vez mais.

No sentido de destruição da humanidade por meio da destruição da infância e da juventude, vou deixar registrado em alto e bom tom que considero Papert e Negroponte verdadeiros coveiros da humanidade.

Referências

[ANG 01] Angrist, J e V. Lavy. New Evidence on Classroom Computers in Pupil Learning. Economic Journal, Oct. 2002, 112 (482), 735-765 e Discussion Paper No. 362, Bonn: Institute for the Study of Labor (IZA), 2001, disponível de http://ftp.iza.org/dp362.pdf

[ARM 01] Armstrong, A. e C. Casement. A Criança e a Máquina – como os computadores colocam a educação de nossos filhos em risco. Trad. R.C. Costa. Porto Alegre: Artmed, 2001.

[FUC 04] Fuchs, T. e L. Woessman. Computers and Student Learning: Bivariate and Multivariate Evidence on the Availability and Use of Computers at Home and at School. CESIfo Working Paper No. 1321. München: Institut for Economic Research, Univ. of Münich, 2004. Disponível em http://ideas.repec.org/p/ces/ceswps/_1321.html

[LAN 98] Lanz, R. A A Pedagogia Waldorf: Caminho para um Ensino mais Humano. 6ª ed. São Paulo: Ed. Antroposófica, 1998.

[LIN 06?] Linn, S. Crianças do Consumo: a Infância Roubada. Trad. C. Tognelli. São Paulo: Insituto Alana, 2006.

[PAP 85] Papert, S. LOGO: Computadores e Educação. Trad. J.A. Valente. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1985.

[SET 88] Chaves, E. e V.W. Setzer. O Uso de Computadores em Escolas: Fundamentos e Críticas. São Paulo, Ed. Scipione 1988.

[SET 05] Setzer, V.W. Meios Eletrônicos e Educação: uma visão alternativa. São Paulo: Ed. Escrituras, 3ª ed. 2005.

[SPI 05] Spitzer, M. Vorsicht Bildschirm! Elektronischen Medien, Gehirnentwicklung, Gesundheit und Gesellschaft (Atenção, Tela! Meios Eletrônicos, Desenvolvimento Cerebral, Saúde e Sociedade). Stuttgart: Klett. 2005. Veja-se também www.uni-ulm.de/klinik/psychiatrie3/leitung.html

[WAR 03] Warschauer. M. Demystifying the digital divide. Scientific American, Vol. 289, No 2, August 2003, pp. 42-47.

terça-feira, maio 16, 2006

Profissional de computação "passeia" por várias áreas

A culpa é deles. Claro que não estão sozinhos na empreitada, mas são um dos responsáveis pela quantidade --e qualidade-- de tecnologia que nos cerca. O cientista da computação está presente nos mais diversos setores da produção, da agricultura à música.

Criador de softwares (programas para computadores, como editores de imagens ou de sons), o bacharel em ciência da computação é a pessoa que faz, ao lado de quem cursou engenharia da computação ou sistema de informação, a migração de métodos manuais de trabalho para a informatização e a automação.

"Hoje, como tudo envolve computação, comunicação e informação, o campo de atividade é variado. Pode-se trabalhar com jogos eletrônicos, com softwares para celular, para equipamentos eletrônicos, para lojas, com sistemas médicos e com som e imagens digitais", enumera Roberto Ferrari, coordenador do curso de ciência da computação da UFSCar.

Dentre todas essas possibilidades, o cientista da computação Rafael Piccolo, 24, conseguiu uma vaga no mercado de trabalho em uma empresa que desenvolve softwares para a área de saúde.

De acordo com ele, os programas que desenvolve controlam da entrada do paciente no hospital à folha de pagamento. "É um software que faz tudo isso, mas cada área do hospital tem acesso para entrar apenas no seu setor. Quem programa isso é o cientista da computação", afirma Piccolo.

Mas a tarefa de espalhar a tecnologia para todos os cantos não é restrita ao cientista da computação. A revolução digital conta também com outros paladinos, como o engenheiro da computação e o profissional graduado em sistema de informação. "Só com a formação de bons profissionais é que melhoraremos a qualidade do software brasileiro", diz Maurício Nacib Pontuschka, coordenador do curso na PUC-SP.

Em uma analogia à indústria automobilística, segundo Edson Norberto Cáceres, diretor de Educação da Sociedade Brasileira de Computação, o cientista e o engenheiro projetam o carro, já quem cursou sistema de informação monta o veículo.

Formação

O contato estreito com computadores, na maioria das vezes, é um dos principais fatores que levam os estudantes ao curso de ciência da computação. No entanto vale um alerta feito por professores da área: na graduação, não basta apenas gostar de computadores, é necessário muita habilidade em matemática.

"Na UFSCar, os alunos estudam matemática nos três primeiros semestres. Isso os ajuda a desenvolver o raciocínio abstrato, auxilia no desenvolvimento de programas e no estudo da computação gráfica", afirma Ferrari.

A matemática, principal arma do cientista da computação, é também uma armadilha para os universitários. Por causa dela, muitos estudantes desistem do curso. "A desistência é alta, porque eles sabem que sem a matemática não dá para ser um bom profissional", diz Cáceres.

Em compensação, aqueles que superam os entraves com a disciplina e se formam obtêm uma renda inicial, na capital paulista, de R$ 2.500, em média.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

A tragédia do estudante sério no Brasil

Olavo de Carvalho

Toda semana, recebo dezenas de cartas de estudantes que, em busca de alguma formação intelectual, encontraram nas universidades que freqüentam apenas propaganda comunista rasteira, porca, subginasiana.

Não são, como em geral imaginam, vítimas de puras circunstâncias políticas imediatas. Gemem sob uma montanha de fatores adversos à inteligência humana, que foram se acumulando no mundo, e não só no Brasil, ao longo das últimas décadas. Se a primeira metade do século XX trouxe um florescimento intelectual incomum, a segunda foi uma devastação geral como raramente se viu na História. A queda foi tão profunda que já não se pode medi-la. Num panorama inteiramente dominado por charlatães caricatos como Noam Chomsky, Richard Dawkins, Edward Said, Jacques Derrida, Julia Kristeva, a época em que floresceram quase que simultaneamente Edmund Husserl, Karl Jaspers, Louis Lavelle, Alfred North Whitehead, Benedetto Croce, Jan Huizinga,
Arnold Toynbee – e na literatura T. S. Eliot, W. B. Yeats, Ezra Pound, Thomas Mann, Franz Kafka, Jacob Wassermann, Robert Musil, Hermann Broch, Heimito von Doderer – já se tornou invisível, inalcançável à imaginação dos nossos contemporâneos. Toda comparação é entre alguma coisa e alguma outra coisa. Não se pode comparar tudo com nada.

Isso não quer dizer que as fontes do conhecimento tenham secado. Pensadores de grande envergadura – um Eric Voegelin, um Bernard Lonergan, um Xavier Zubiri – sobreviveram à debacle dos anos 60 e continuaram atuantes, o primeiro até 1985, o segundo até 1984, o terceiro até 1983. Mas seus ensinamentos são ainda a posse exclusiva de círculos seletos. Não entram na corrente geral das idéias, nem poderiam entrar sem sujar-se, sem transformar-se em matéria de discussões idiotas como vem acontecendo, graças à ascensão política de alguns de seus discípulos, com o infeliz Leo Strauss.

Pois a desgraça se deu justamente na "corrente geral". O fim da II Guerra Mundial trouxe uma prodigiosa reorganização das bases sociais e econômicas da vida intelectual no mundo. Novas instituições, novas redes de comunicação, novos mecanismos de estocagem e distribuição das informações acadêmicas, novos públicos e, sobretudo, a ampliação inaudita do apoio estatal e privado à cultura e a formação dos grandes organismos internacionais como a ONU e a Unesco. Tudo isso veio junto com o descrédito do marxismo soviético e a profunda mutação interna da militância esquerdista internacional, a essa altura já plenamente imbuída das duas lições aprendidas da Escola de Frankfurt e
de Georg Lukacs (mas também, mais discretamente, de Martin Heidegger):

(1) a luta essencial não era propriamente contra o capitalismo, mas contra "a civilização ocidental";
(2) o agente principal do processo era a classe dos intelectuais.

Nessas condições, o crescimento fabuloso dos meios de atuação veio junto com o esforço multilateral de apropriação desses meios por parte de grupos militantes bem pouco interessados em "compreender o mundo" mas totalmente devotados a "transformá-lo". A redução drástica da atividade intelectual ao ativismo político foi a conseqüência desejada e planejada dessa operação, realizada em escala mundial a partir dos anos 60.

Não que o fenômeno fosse totalmente desconhecido antes disso. Um vasto ensaio geral já vinha sendo realizado nos EUA desde a década de 30 pelo menos, através das grandes fundações "não lucrativas" que descobriram seu poder de orientar e manipular a seu belprazer a atividade intelectual, científica e educacional mediante a simples seleção ideologicamente orientada dos destinatários de suas verbas bilionárias.

Em 1954, uma comissão de investigações do Congresso americano já havia descoberto que fundações como Rockefeller, Carnegie e Ford exerciam controle indevido sobre as universidades, as instituições de pesquisa e a cultura em geral, orientando-as num sentido francamente anti-americano, anticristão e até anticapitalista. (Não me perguntem pela milésima vez com que interesse os grandes capitalistas podem agir contra o capitalismo. A explicação está resumida em http://www.olavodecarvalho.org/semana/040617jt.htm e http://www.olavodecarvalho.org/textos/debate_usp_4.htm.) Inevitavelmente, a influência exercida por essas organizações não consistiu só em introduzir uma determinada cor política na produção cultural, mas em alterá-la e corrompê-la até às raízes, subordinando aos objetivos políticos e publicitários visados todas as exigências de honestidade, veracidade e rigor. Sem essa interferência, fraudes cabeludas como o Relatório Kinsey ou a pseudo-antropologia de Margaret Mead jamais teriam conseguido impor-se ao meio acadêmico e à mídia
cultural como produtos respeitáveis de uma atividade científica normal.

A comissão foi alvo de ataques virulentos de toda a grande mídia, e seu trabalho acabou por ser esquecido, mas ele ainda é uma das melhores fontes de consulta sobre a instrumentalização política da cultura (v. René Wormser, Foundations, Their Power and Influence, New York, Devin-Adair, 1958 – vocês podem comprá-lo pelo site www.bookfinder.com). Na verdade, sem ele não se pode compreender nada do que se passou em seguida, pois o que se passou foi que o experimento tentado em escala americana foi ampliado para o mundo todo: a apropriação dos meios de ação cultural pelas organizações militantes e o sacrifício integral da inteligência humana no altar da "vontade de poder" simplesmente se globalizaram.

Recursos incalculavelmente vastos, que poderiam ter sido utilizados para o progresso do conhecimento e a melhoria da condição de vida da espécie humana foram assim desperdiçados para sustentar a guerra geral da estupidez militante contra a "civilização ocidental" que havia gerado esses mesmos recursos.

Embora esse processo seja de alcance mundial, é claro que o seu peso se fez sentir mais densamente em países novos do Terceiro Mundo, onde as criações das épocas anteriores não tinham sido assimiladas com muita profundidade e as raízes da civilização podiam ser mais facilmente cortadas. No Brasil, da década de 60 em diante, os progressos da barbárie foram talvez mais rápidos do que em qualquer outro lugar, destruindo com espantosa facilidade as sementes de cultura que, embora frágeis, vinham dando alguns frutos promissores. A comparação impossível entre as duas épocas, que mencionei acima, é ainda mais impossível no caso brasileiro. Na década de 50, tínhamos, vivos e atuantes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Àlvaro Lins, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux, Mário Ferreira dos Santos, Vicente Ferreira da Silva, Herberto Sales, Cornélio Penna, Gustavo Corção, Nelson Rodrigues, Lúcio Cardoso, Heitor Villa-Lobos, Augusto Frederico Schmidt, a lista não acaba mais. Hoje, quem representa na mídia a imagem da "cultura brasileira"? Paulo Coelho, Luís Fernando Veríssimo, Gilberto Gil, Arnaldo Jabor, Emir Sader, Frei Betto e Leonardo Boff. Perto desses, Chomsky é Aristóteles. É o grau mais alto pelo qual se medem. Chamar isso de crise, ou mesmo de decadência, é de um otimismo delirante. A cultura brasileira tornou-se a caricatura de uma palhaçada. É uma coisa oca, besta, disforme, doente, incalculavemente irrisória.

A inteligência, ao contrário do dinheiro ou da saúde, tem esta peculiaridade: quanto mais você a perde, menos dá pela falta dela. O homem inteligente, afeito a estudos pesados, logo acha que emburreceu quando, cansado, nervoso ou mal dormido, sente dificuldade em compreender algo. Aquele que nunca entendeu grande coisa se acha perfeitamente normal quando entende menos ainda, pois esqueceu o pouco que entendia e já não tem como comparar. Uma das coisas que me deliciam, que me levam ao êxtase quando contemplo o Brasil de hoje, é o ar de seriedade com que as pessoas discutem e pretendem sanar os males econômicos, políticos e administrativos do Brasil, sem ligar a mínima para a destruição da cultura, como se a inteligencia prática subsistisse incólume ao emburrecimento geral, como se inteligência fosse um adorno a ser acrescentado ao sucesso depois de resolvidos todos os problemas ou como se a inépcia absoluta não fosse de maneira alguma um obstáculo à conquista da felicidade geral. A prova mais evidente da insensibilidade torpe é o sujeito já nem sentir saudade da consciência que teve um dia.

Mas não, a inteligência nacional não acabou no dia em que os nossos estudantes tiraram o último lugar numa avaliação entre alunos do curso secundário de 32 países: acabou logo em seguida, quando o ministro da Educação disse que o resultado poderia ter sido pior.

Num sentido mais profundo do que o ministro imaginava, poderia mesmo. Na eleição seguinte, o país colocou na presidência um carreirista enriquecido, de terno Armani e unhas polidas, que, por orgulhar-se de jamais ler livros, foi proclamado um símbolo da autenticidade popular. A imagem era falsa, grotesca e insultuosa, mas ninguém percebeu. Se existe um grau abaixo do grotesco, porém, ele foi atingido logo em seguida, quando o escritor Raymundo Faoro, quanto mais bobo mais celebrado nas esquerdas como inteligência luminosa, sugeriu o nome do então presidenciável para ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Perto disso, tirar o último lugar num teste chegava a ser meritório.

Se o desespero dos estudantes que me escrevem viesse só da situação política, haveria esperança de saná-lo por meio da ação política. Mas a ação política é um subproduto da cultura e, no estado em que as coisas estão, nenhuma ação política inteligente, ao menos em escala federal, é previsível nas próximas duas ou três gerações. Nas próximas eleições, por exemplo, o país terá de optar novamente entre PT e PSDB, isto é, os dois filhotes monstruosos gerados no ventre da USP, a mãe da esterilidade nacional, ou como bem a sintetizou o poeta Bruno Tolentino, a "p... que não pariu". Sim, a política brasileira virou uma imensa assembléia de estudantes da USP, com o Partido Comunista de um lado, a Ação Popular de outro, num torneio de arrogância, presunção, hipocrisia, sadismo mental, mendacidade ilimitada e estupidez sem fim. A USP levou meio século para chegar ao poder, e ainda não parou de gerar pseudo-intelectuais ambiciosos, ávidos de mandar, sedentos de ministérios. Sua obra de destruição está longe de haver-se completado.

Da política nada de bom se pode esperar num prazo humanamente suportável. Uma ação cultural de grande escala – a fundação de uma autêntica instituição de ensino superior, para contrabalançar a desgraça uspiana – também não é nada provável, dada a omissão das chamadas "elites", sempre de rabo entre as pernas, oscilando entre lamber mais um pouco os pés da canalha petista ou apegar-se ao primeiro zesserra que apareça.

Ao estudante que consiga ainda vislumbrar o que é vida intelectual e faça dela o objetivo de sua existência, restam dois caminhos: o exílio, que pode levar ao lugar errado (a miséria brasileira nasce em Paris), e o isolamento, que pode levar os mais fracos a um desespero ainda mais profundo do que aquele em que se encontram.

A única solução viável, que enxergo, é a formação de pequenos grupos solidários, firmemente decididos a obter uma formação intelectual sólida, de início sem nenhum reconhecimento oficial ou acadêmico, mas forçando mais tarde a obtenção desse reconhecimento mediante prova de superioridade acachapante. Já não leciono no Brasil, mas a experiência mostrou que muito aluno meu, com alguns anos de aulas e bastante estudo em casa, já está pronto para dar de dez a zero, não digo em alunos, mas em professores da USP do calibrinho de Demétrio Magnoli e Emir Sader, o que, bem feitas as contas, é até luta desigual, é até covardia.

O processo é trabalhoso, mas simples: cumprir as tarefas tradicionais do estudo acadêmico, dominar o trivium, aprender a escrever lendo e imitando os clássicos de três idiomas pelo menos, estudar muito Aristóteles, muito Platão, muito Tomás de Aquino, muito Leibniz, Schelling e Husserl, absorver o quanto possível o legado da universidade alemã e austríaca da primeira metade do século XX, conhecer muito bem a história comparada de duas ou três civilizações, absorver os clássicos da teologia e da mística de pelo menos três religiões, e então, só então, ler Marx, Nietzsche, Foucault. Se depois desse regime você ainda se impressionar com esses três, é porque é burro mesmo e eu nada posso fazer por você.

Mas o ambiente universitário brasileiro de hoje é tão baixo, tão torpe, que só de a gente apresentar essa lista – o mínimo requerido para uma formação séria de filósofo ou erudito –, o pessoal já arregala os olhos de susto. Na verdade, o estudante brasileiro não lê nada, só resumo e orelha, além de Emir Sader e da dupla Betto & Boff, que não valem o resumo de uma orelha. É tudo farsa, chanchada, pose. Não há quem não saiba disso e não há quem não acabe se acomodando a essa situação como se fosse natural e inevitável. A abjeção intelectual deste país é sem fim.